A evolução do nível trófico humano durante o Pleistoceno


Durante milhões de anos, o gênero Homo trilhou uma trajetória alimentar que deixou marcas profundas em sua biologia, comportamento e evolução cultural. O artigo The evolution of the human trophic level during the Pleistocene (Ben-Dor et al., 2021) propõe uma revisão abrangente e sistemática da posição trófica humana ao longo do Pleistoceno, com base em múltiplas linhas de evidência — fisiológica, genética, arqueológica, paleontológica e comportamental.

Contexto e objetivo do estudo

Por muito tempo, reconstruções da dieta humana pré-histórica foram baseadas, principalmente, em analogias com grupos caçadores-coletores modernos. No entanto, essas populações contemporâneas vivem em ambientes e com tecnologias que diferem significativamente daqueles enfrentados pelos humanos do Pleistoceno, o que limita a validade dessas comparações.

Os autores propuseram, então, avaliar sistematicamente a posição trófica humana usando dados integrados de diferentes disciplinas, a fim de traçar um panorama mais confiável e coerente sobre a dieta de nossos ancestrais.

Evidências fisiológicas e genéticas

A análise revelou múltiplos traços fisiológicos que apontam para adaptações a uma dieta predominantemente carnívora:

  • Morfologia intestinal: humanos possuem intestinos proporcionalmente mais curtos do que primatas herbívoros, com predominância do intestino delgado, estrutura típica de carnívoros, adaptada à digestão de proteínas e gorduras animais.
  • Acidez gástrica elevada: o pH estomacal humano é tão ácido quanto o de carniceiros, sugerindo adaptação ao consumo de carne potencialmente contaminada.
  • Resistência insulínica fisiológica: semelhante a carnívoros, o metabolismo humano é menos sensível à insulina em condições fisiológicas normais.
  • Armazenamento de gordura: maior capacidade de armazenar gordura corporal e adaptar-se a períodos de jejum prolongado, característicos de predadores dependentes de presas intermitentes.
  • Adaptações genéticas: alterações nos genes ligados ao metabolismo de ácidos graxos e à conversão de DHA (ácido docosa-hexaenoico) sinalizam transições dietéticas pontuais e localizadas, como o aumento de plantas ricas em certos ácidos graxos na África cerca de 85 mil anos atrás.

Evidências arqueológicas e zooarqueológicas

A cultura material também reflete um forte componente carnívoro:

  • Preferência por grandes presas gordurosas: registros arqueológicos indicam que hominídeos preferiam caçar animais grandes e ricos em gordura, mesmo que isso envolvesse custos energéticos elevados.
  • Exploração intensiva de gordura óssea: uso sistemático de ossos para obtenção de gordura, essencial para compensar a limitação metabólica de energia proveniente exclusivamente de proteínas.
  • Isótopos estáveis: análises de colágeno fóssil demonstram que populações humanas mantiveram altos níveis de nitrogênio-15, típicos de dietas carnívoras, até o final do Paleolítico.

Padrão evolutivo identificado

O padrão traçado pelos autores mostra que:

  • Homo habilis e primeiros Homo erectus: apresentavam dietas progressivamente mais ricas em carne, aumentando sua posição trófica.
  • Homo erectus: atingiu o auge como hipercarnívoro, ou seja, consumindo mais de 70% da dieta derivada de fontes animais, com comportamento de predador social especializado na caça de megafauna.
  • Homo sapiens: manteve características de alta carnivoria até o final do Paleolítico, quando surgem evidências de declínio no nível trófico, associadas à redução da megafauna e ao desenvolvimento de tecnologias que permitiram o aumento do consumo de plantas.

Essa transição foi ainda mais acentuada no Mesolítico e Neolítico, com a disseminação da agricultura, culminando em um retorno a níveis tróficos mais baixos, refletindo maior dependência de vegetais.

Implicações e conclusões

Os autores concluem que a trajetória evolutiva humana seguiu um "caminho em zigue-zague", saindo de uma dieta mais generalista, alcançando um grau de especialização carnívora extremo no Homo erectus, e retornando a dietas mais flexíveis no final do Paleolítico e início do Holoceno.

A memória biológica dessa longa adaptação carnívora permanece impressa na fisiologia, metabolismo e morfologia humana atual. Esse legado deve ser levado em conta quando se discute padrões alimentares compatíveis com nossa evolução.

Os achados também desafiam a visão simplista de que os humanos sempre foram onívoros flexíveis e mostram que, durante grande parte de sua evolução, os humanos estavam muito mais próximos de predadores especializados do que se imagina hoje.

Fonte: https://doi.org/10.1002/ajpa.24247

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