Desde os primórdios da evolução humana, a carne ocupou um papel central e decisivo na trajetória biológica e cultural da nossa espécie. Este artigo de Neil J. Mann, publicado na revista Meat Science, revisita as evidências antropológicas e científicas sobre a importância da carne na dieta dos hominídeos e examina as implicações desse padrão alimentar na saúde contemporânea.
A transição alimentar durante a evolução
A ideia de que o ser humano teria evoluído como um animal predominantemente herbívoro é refutada por sólidas evidências arqueológicas e antropológicas. Entre 3 e 4 milhões de anos atrás, nossos ancestrais hominídeos deixaram os ambientes florestais úmidos da África e passaram a habitar regiões de savana aberta, caracterizadas pela escassez de plantas comestíveis, mas abundância de grandes herbívoros. Esse novo contexto ecológico exigiu mudanças radicais na dieta, inicialmente com o aproveitamento de carcaças e, posteriormente, com o desenvolvimento da caça.
Os registros fósseis revelam adaptações fisiológicas significativas que acompanharam essa mudança: redução do tamanho do intestino grosso e aumento proporcional do intestino delgado — típico de dietas com alimentos de alta densidade nutricional e fácil digestão, como a carne — além de alterações na dentição, mais adequadas para rasgar carne do que para triturar vegetais fibrosos.
Carne e encefalização
Um marco crucial dessa transição foi o aumento expressivo do tamanho cerebral, conhecido como encefalização. Este processo ocorreu nas últimas centenas de milhares de anos e exigiu não apenas maior aporte energético, mas também nutrientes específicos como ácidos graxos poli-insaturados de cadeia longa, notadamente DHA e AA, abundantes nos tecidos animais. Dietas ricas em alimentos de origem animal foram fundamentais para suprir esses nutrientes essenciais, uma vez que a capacidade humana de sintetizá-los a partir de precursores vegetais é limitada.
Essa expansão cerebral foi acompanhada por uma redução no tamanho relativo do sistema digestivo, o que pressupõe uma dieta de altíssima qualidade nutricional — impossível de alcançar com alimentos vegetais fibrosos e pobres em energia disponíveis nas savanas africanas.
Efeitos da transição para a agricultura
A transição para a agricultura, iniciada há aproximadamente 10 mil anos, representou uma inflexão significativa na dieta humana. O predomínio de cereais e leguminosas resultou em dietas com menor teor proteico e lipídico, além de desequilíbrios como o aumento da razão ômega-6/ômega-3 e declínio na disponibilidade de micronutrientes essenciais como ferro, zinco e vitamina B12. Evidências arqueológicas apontam para deterioração da saúde óssea, redução da estatura e aumento de deficiências nutricionais e doenças infecciosas em populações agrícolas iniciais.
Carne e saúde na atualidade
Atualmente, discute-se intensamente o papel da carne na saúde humana. Embora alguns estudos observacionais associem consumo elevado de carne (especialmente processada) a risco cardiovascular e câncer colorretal, tais associações são frequentemente confundidas por padrões de estilo de vida e não provam causalidade.
O artigo destaca que carnes magras, particularmente de animais criados a pasto, apresentam perfil lipídico favorável, com baixo teor de ácidos graxos saturados hipercolesterolêmicos (mirístico e palmítico) e proporção significativa de ácidos graxos mono e poli-insaturados. Além disso, carnes vermelhas são fontes relevantes de nutrientes essenciais com elevada biodisponibilidade: ferro heme, zinco, vitamina B12, creatina, taurina, glutationa e ácidos graxos ômega-3 de cadeia longa.
Carne e saúde cerebral
Particular ênfase é dada ao papel da carne na saúde e no desenvolvimento cerebral. Estudos mostram que deficiências de ferro, zinco e vitamina B12 estão associadas a prejuízos cognitivos em crianças e idosos, alterações comportamentais e atrasos no desenvolvimento motor. Os ácidos graxos ômega-3, por sua vez, são determinantes para a integridade das membranas neuronais e a produção de neurotransmissores. A carne, especialmente de ruminantes alimentados com pasto, contribui de maneira significativa para o aporte desses nutrientes na dieta, sobretudo em populações com baixo consumo de peixe.
Conclusão
O padrão alimentar evolutivo humano, durante a maior parte da nossa história como caçadores-coletores, foi caracterizado por elevada dependência de alimentos de origem animal. Este padrão não apenas moldou nossa fisiologia e metabolismo, como também deixou marcas em nossas necessidades nutricionais atuais. A redução do consumo de carne e a adoção de dietas ricas em carboidratos refinados e pobres em micronutrientes essenciais podem estar implicadas no aumento de doenças crônicas modernas, incluindo deficiências cognitivas, transtornos metabólicos e doenças cardiovasculares.
Portanto, a análise histórica e científica revisada no artigo reforça a ideia de que a carne — especialmente em sua forma não processada e proveniente de animais criados de forma tradicional — deve ocupar um papel relevante em um padrão alimentar saudável e adequado às necessidades biológicas humanas.
