A história evolutiva da espécie humana sempre esteve intimamente ligada à alimentação. No entanto, enquanto adultos frequentemente figuram nos estudos sobre dieta ancestral, a alimentação infantil permanece uma lacuna importante nesse conhecimento. Este tema é crucial: o crescimento acelerado e o desenvolvimento cerebral singular da infância exigem nutrição adequada, e desvios dessa trajetória podem ter consequências duradouras na saúde e no desenvolvimento.
Em um esforço para preencher essa lacuna, pesquisadores realizaram uma revisão sistemática com o objetivo de identificar padrões alimentares entre crianças de 6 meses a 10 anos antes da adoção generalizada da agricultura, buscando aprender com o passado evolutivo e informar diretrizes alimentares contemporâneas.
Contexto e justificativa
Crianças ao redor do mundo ainda sofrem com altos índices de desnutrição: aproximadamente 21% apresentam crescimento comprometido, 5,6% estão acima do peso e milhões sofrem com deficiências de micronutrientes. Essas condições resultam não apenas em mortalidade precoce, mas também em prejuízos cognitivos, motores e socioemocionais. A revisão parte do pressuposto de que a transição para uma dieta agrícola, centrada em cereais e menos variada, marcou uma ruptura importante com a dieta que moldou a fisiologia humana ao longo de milênios.
Metodologia da revisão
Foram analisados dados sobre dietas infantis em 95 grupos culturais, utilizando informações de estudos arqueológicos (isótopos em ossos e dentes), análises de marcadores de estresse e etnografias. Os grupos foram classificados conforme o modo de subsistência — coletores-caçadores-pescadores (CCP) e grupos de agricultura inicial (AI) — e contextos ambientais definidos por zonas climáticas.
A análise também considerou diferenças entre dietas infantis e adultas, explorando variações ao longo do ciclo da vida e as adaptações às condições ecológicas locais.
Principais resultados
1. Predomínio de alimentos de origem animal
Alimentos de origem animal (terrestres e aquáticos) foram os mais mencionados nas dietas infantis, em especial nos grupos CCP, onde representaram cerca de 31% das referências, contra 24,6% nos grupos AI. Peixes e frutos do mar também foram mais frequentes entre CCP (17,7%) que em AI (12,7%).
Além disso, outros alimentos animais como insetos, carnes de pequenos vertebrados e caça variada figuravam com destaque entre as fontes nutricionais infantis, refletindo dietas ricas em proteínas de alta qualidade e micronutrientes biodisponíveis, como ferro e zinco — elementos críticos para o crescimento e desenvolvimento cerebral.
2. Variedade de plantas e baixa dependência de cereais
Nos grupos CCP, frutas, raízes e tubérculos eram significativamente mais presentes, oferecendo diversidade nutricional e fontes adicionais de energia, fibras e compostos bioativos. Em contraste, as crianças de sociedades AI consumiam cereais com maior frequência, especialmente milho, arroz e trigo, alimentos associados a menor densidade de nutrientes e, em alguns estudos, a piores desfechos de saúde (ex.: alta prevalência de hipoplasia linear do esmalte dentário, indicativa de estresse nutricional e infecções).
3. Adaptação ao ambiente
A dieta infantil mostrava-se diretamente influenciada pelo ecossistema local. Por exemplo, crianças que viviam em ambientes costeiros apresentavam dietas com maior proporção de moluscos e mariscos. Essa plasticidade alimentar revela um padrão adaptativo sofisticado, em que a natureza imediata era a principal provedora de recursos nutritivos.
4. Diferenças ao longo do ciclo da vida
Mais da metade dos estudos que compararam dietas infantis e adultas encontraram diferenças substanciais. Crianças consumiam proporcionalmente mais alimentos de fácil acesso — frutos, tubérculos e pequenos animais — enquanto adultos tinham maior consumo de grandes presas ou alimentos em maiores quantidades.
Relevância atual e implicações para a saúde pública
A revisão sugere que a dieta evolutiva infantil era amplamente variada e densamente nutritiva, com destaque para fontes animais e alimentos frescos, contrastando fortemente com padrões atuais caracterizados por homogeneidade e ultraprocessados. As evidências reforçam a importância de garantir acesso a alimentos densos em nutrientes e de elevada qualidade biológica na alimentação infantil, considerando as necessidades específicas dessa fase crítica.
Os achados também ressaltam a importância da diversidade dietética verdadeira — incluindo biodiversidade e variedade dentro dos grupos alimentares — como um princípio central para promover saúde e desenvolvimento infantil. Dietas baseadas em cereais e pobres em diversidade, predominantes em muitos contextos hoje, podem contribuir para o persistente problema da desnutrição infantil.
Por fim, os autores defendem que, embora não seja possível ou necessário replicar integralmente dietas ancestrais, a adaptação de elementos dessas dietas pode ser particularmente relevante para o desenvolvimento saudável de crianças contemporâneas, sobretudo em contextos vulneráveis.
Conclusão
Este estudo aponta para uma disparidade entre as necessidades biológicas moldadas pela evolução humana e os padrões dietéticos atuais, sugerindo que as estratégias de saúde pública devem reavaliar o papel de alimentos densos em nutrientes, especialmente de origem animal, e a diversidade alimentar como fundamentos para o combate à desnutrição infantil.
Dois pontos centrais emergem como diretrizes:
- Garantir acesso equitativo a alimentos nutritivos e diversificados;
- Reintegrar princípios da adaptação evolutiva nas orientações alimentares para crianças, respeitando a ecologia local e promovendo sustentabilidade.
As políticas públicas e diretrizes alimentares poderiam se beneficiar da incorporação desses achados, ajudando a prevenir déficits nutricionais e promover um desenvolvimento infantil mais saudável.
