Guest post: Gases no sistema digestivo e dieta.


Este é um relatório feito por António  para o seu médico pessoal, depois de consultar 5 gastroenterologistas que não resolveram o seu problema dos gases no aparelho digestivo (intestino delgado e estômago) e que todas as prescrições que fizeram não resolveram ou até agravaram o problema.


Por António Heitor Reis,

Só consegui controlar o problema dos gases no sistema digestivo raciocinando num quadro de com- preensão do processo digestivo muito diferente do comumente aceite. Para tal contribuiu decisiva- mente a leitura do livro do gastroenterologista Walter Voegtlin,“Stone age diet based on in-depth studies of human ecology and the diet of man”, que pode ser obtido on-line (ver ref [1] abaixo), para além de muitas dezenas de artigos de investigação que têm sido publicados em revistas biomédicas de referência. De um modo muito resumido, o meu quadro de trabalho é o seguinte:

  1. Com a digestão obtemos aminoácidos para fazer novas proteínas, açúcares (glucose, frutose, lac- tose, etc) e ácidos gordos livres para gerarmos energia (via ATP), e ainda minerais, vitaminas, etc. para gerarmos membranas celulares, enzimas, etc. [2].
  2. Para termos tudo isto na forma biodisponível temos de romper as membranas celulares dos ali- mentos que ingerimos na forma bruta, e assim libertar os conteúdos celulares para nosso uso.
  3. A mastigação divide os alimentos brutos, os ácidos estomacais dissolvem as membranas celula- res, libertando o conteúdo das células (proteínas, gorduras, açúcares, etc), as proteases (enzimas) estomacais decompõem as proteínas em aminoácidos que são absorvidos no intestino delgado. As gorduras são emulsionadas (finamente divididas em gotículas) e em seguida em ácidos gor- dos livres, principalmente através dos ácidos biliares, sendo depois absorvidos no intestino del- gado. Os carbohidratos, nomeadamente o amido, são decomposto em açúcares elementares pela acção da enzima amilase (que está na saliva) e pelos ácidos estomacais, e depois absorvidos no intestino delgado. A fibra (células de parede celulósica) não são rompidas pois não temos enzi- mas para tal e passam ao intestino delgado sem absorção, sendo depois “despejadas” no intestino grosso sem alteração [1, 2]. Aí são as bactérias que tomam conta do assunto, rompem as mem- branas celulósicas fermentam o conteúdo das células vegetais e geram gases [1].
  4. Para digerir a proteína temos muitas enzimas no estômago (pepsina, tripsina, etc). Para digerir o amido só temos a amilase na saliva libertada na mastigação. O mesmo se passa com a generali- dade dos carbohidratos. Por isso, quem come muito pão depressa fica “empanzinado”, pois no estômago, a não ser a amilase da saliva, já não há outras enzimas para continuar a digestão. Uma parte do amido que foi desdobrada em açúcares é absorvida no intestino delgado (se for pão de farinha refinada é imediatamente absorvida, e é quase como uma injecção de glucose, com os subsequentes picos de insulina, e consequentemente o risco de diabetes [2], cancro [9] etc.), e a outra parte passa pelo intestino delgado e intestino grosso onde é decomposta pelas bactérias ge- rando gás (CO2, hidrogénio e metano, inodoros que em parte retornam ao estômago!). A proteína é praticamente toda decomposta em aminoácidos que são facilmente absorvidos no intestino del- gado, não gerando gases. A gordura - se a vesícula estiver funcional - é praticamente toda desdo- brada em ácidos gordos que são absorvidos no intestino delgado, não gerando gás [1], [2].
  5. Neste quadro se comermos só proteína e gordura temos uma digestão rápida. Se juntarmos car- bohidratos, estes envolvem as proteinas, tornam mais difícil o ataque pelos ácidos estomacais, e tornam difícil o acesso das enzimas às proteínas, e a digestão é mais lenta, uma parte da proteína passa não digerida pelo intestino delgado e vai para o cólon. Aí, as bactérias decompõem a pro- teína e libertam gás sulfuroso (mal-cheiroso). A situação piora se juntamente com a proteína ani- mal ingerirmos proteina vegetal (como por exemplo na feijoada). Como a semente de feijão se destina a produzir uma nova planta, está protejida por inibidores das proteases (pepsinas, tripsi- nas, etc) dos ataques dos micróbios que lhes tentam comer a proteina. Estes inibidores das pro- teases também inibem as enzimas que decompõem a proteína animal [3]. Assim temos um gran- de banquete para as bactérias no cólon com abundante geração de gás sulfuroso. A situação pas- sa-se da mesma forma com todas as leguminosas.
  6. Fazendo aqui o ponto da situação: Todo o material vegetal é difícil de digerir, devido à dificulda- de de rompimento das membranas celulósicas das células vegetais, o rendimento da digestão é muito baixo, por isso os vegetarianos e veganos têm de comer grandes quantidades de matéria vegetal, tal como os herbívoros (ovelhas, vacas, cavalos, etc). Para além disso, têm de ter uma grande diversidade de bactérias no cólon para processar todo o material não digerido. Na diges- tão bacteriana dos carbohidratos, açúcares e membranas celulósicas geram-se produtos agressi- vos para o cólon. As intolerâncias ao glúten, às ceramidas, às saponinas, às lectinas (comuns nos feijões, amendoins e outros legumes), à lactose, etc., estão na ordem do dia, assim como o intes- tino irritável - melhor dito: irritado, que alguns gastroenterologistas vêm tratando com uma dieta alta em proteina! -, a doença de Crohn, os cancros digestivos (os veganos têm um risco acrescido para cancro no colon [4]), são doenças da “civilização” quase desconhecidas por exemplo entre os Masai (que têm uma dieta à base de carne) e os Inuits e Esquimós que comem respectivamen- te carne e gordura de foca e de rena. O estudo EPUIC-Oxford revelou que os veganos têm maior incidência de cancro do cólon que as pessoas que seguem uma dieta normal (ver ref.[4)). Pelo contrário, não se verifica aumento de mortalidade por todas as causas nas pessoas que têm uma dieta alta em gordura (excepto gorduras trans (margarinas) [ver refs. [5], [6] e [7]), tal como en- tre as que têm uma dieta com base na carne [7, 8].
  7. Do ponto de vista evolutivo, a espécie humana (caçadores/recolectores) andou centenas de mi- lhares de anos a comer carne e gordura animal (terrestre e aquática) e na sua falta comia esporá- dicamente raízes e frutos. A nossa bioquímica foi formatada nesse longo período. Quando o nú- mero de animais se tornou escasso para alimentar os crescentemente numerosos humanos, estes recorreram cada vez mais às raízes, e à domesticação de alguns animais. Com a descoberta dos cereais começou a agricultura e o nascimento de cidades. Finalmente, era possível alimentar muita gente com as reservas de cereais durante todo o ano, não sendo necessário andar de um la- do para o outro a caçar animais, que eram cada vez em menor número. A dieta passou a ser ba- seada nos carbohidratos, os indivíduos ficaram mais baixos, gordos e atarracados (como mostra a arqueologia) e começaram a ter as chamadas “doenças da civilização”, que representam a difi- culdade da nossa bioquímica e fisiologia em se adaptarem a uma transição rapidíssima em ter- mos da história evolutiva (10.000 anos) entre a milenar dieta proteica e a recente dieta com base nos carbohidratos. De facto, análises às múmias do antigo Egipto (dieta à base de trigo, cevada e centeio) revelaram elevadíssima presença de aterosclerose. Estudos actuais mostram que a dieta de carbohidratos está associada às doenças cardiovasculares e ao cancro [8] enquanto a dieta à base de gordura saturada ou insaturada está associada a uma menor mortalidade por todas as cau- sas e, concretamente, a gordura saturada está associada à redução dos AVCs [7] (ver também [6],[9],[10]). Adicionalmente, os picos de insulina gerados pelo grande consumo de carbohidra- tos são há muito ligados ao risco de cancro, e explicam o facto de a metformina - um medica- mento para reduzir a glicemia - reduzir também o risco de cancro [10].
  8. Coloca-se a questão de uma dieta com alto teor de proteinas e gordura poder ser prejudicial para os humanos. De facto, há muitos estudos a mostrarem que uma dieta deste tipo reduz os princi- pais marcadores da inflamação, é usada por alguns médicos para tratar doenças do aparelho di- gestivo (IBS, Crohn, etc), epilepsia, entre outras. Pelo contrário, a “diet heart” (dieta do coração) é considerada ter criado na América uma “nação de obesos e diabéticos”. A controvérsia actual ainda está muito activa, com a maioria dos actores, nomeadamente nutricionistas e profissionais da saúde, ainda muito apegados ao paradigma da dieta de baixa gordura, baixa proteina e alto te- or de vegetais, carbohidratos e fibra. No entanto, será impossível ignorar por muito tempo o acu- mular de evidências, de tal modo que a reapreciação da “dieta do coração” terá de ser feita mais tarde ou mais cedo. Algumas questões foram colocadas relativamente às dietas proteicas: (i) O efeito que poderão ter na função renal: Uma recente análise de quase todos os estudos feitos so- bre esta matéria (meta-análise) concluiu que, em pessoas saudáveis, a dieta proteica não tem influência adversa na função renal (ver ref. [11]); (ii) O efeito que poderá ter nos níveis de coleste- rol: Um estudo recente (2021) baseado no estudo de referência (National Health and Nutrition Examination Survey (NHANES) 1999-2014, com dados de 19.034 pessoas) concluiu que o inter- valo do nível de colesterol LDL - apenas uma fracção (a maior) do colesterol total - com menor mortalidade por todas as causas se situa entre 130 e 180 mg/d [12]. Embora a dieta proteica ele- ve ligeiramente os níveis de LDL, de acordo com o estudo, desde que não ultrapasse 180mg/dl, não aumenta o risco de mortalidade. Por outro lado, muitos estudos evidenciam a associação en- tre os níveis de LDL e a longevidade (ver refs. [13] e [14]).
  9. Neste contexo segui durante algumas semanas uma dieta proteica com gordura (manteiga por ex.), sem carbohidratos, acompanhado de salada verde. A redução do gás no trato digestivo, no- meadamente no estômago foi enorme. Ao não lhes proporcionar carbohidratos e FODMAPs, re- duzi a quantidade de bactérias comensais e produtoras de gás, que a partir do intestino grosso co- lonizam o intestino delgado (SIBO - Small Intestinal Bacterial Overgrowth). Tenho agora algum gás residual que creio ser devido ao facto de estar a reintroduzir alguns carbohidratos (batatas, arroz). Não penso reintroduzir tão cedo na dieta: pão, massas, legumes, frutas FODMAP etc. Não senti reduções na energia diária, e tenho uma sensação de bem-estar e saciedade com redu- zida ingestão de proteina, que é um alimento denso em nutrientes. Como diz o gasteroenterolo- gista Voegtlin [1] o nosso aparelho digestivo é idêntico ao do cão (excepto no que este não tem apêndice). O cão - que não estudou na universidade - come proteína e masca erva, sabedoria ca- nina antiga, pois a erva dá-lhe o grupo metilo que impede que a metabolização da proteina se transforme em tiolactona que agride os vasos sanguíneos [2]. Aprendendo com o cão estou a co- mer proteína com salada verde, verduras cozidas, e citrinos (limão). Por outro lado, a ovelha que só come vegetais, tem quatro bolsas estomacais, onde as bactérias fazem o seu trabalho durante 2 dias para tirar alguns (poucos) nutrientes úteis, e como o rendimento é muito baixo passa o dia a comer e a noite a regurgitar e a ruminar para voltar a engolir. Estou mais perto do cão do que da ovelha!

Buddha said:

Believe nothing just because a so-called wise person said it. Believe nothing just because a belief is generally held.

Believe nothing just because it is said in ancient books. Believe nothing just because it is said to be of divine origin. Believe nothing just because someone else believes it.

Believe only what you yourself test and judge to be true.

Évora, 22 de Novembro de 2021

REFERÊNCIAS

  1. Voegtlin, Walter L., Stone age diet based on in-depth studies of human ecology and the diet of man. New York : Vantage Press, 1975.
  2. Newsholme E, Leech A. Functional biochemistry in health and disease. Wiley Blackwell Publishing, Hoboken, NJ,2010.
  3. Gilani et al.: Effects of Antinutritional Factors on Protein Digestibility and Amino Acid Availability in Foods, Jlounal of AOAC International Vol. 88, No. 3, 2005.
  4. Key TJ, Appleby PN, Spencer EA, Travis RC, Roddam AW, Allen NE. Cancer incidence in vegetarians: results from the European Prospective Investigation into Cancer and Nutrition (EPIC-Oxford), Am. Journal Clin Nutr. 2009 May;89(5):1620S-1626S.
  5. Minkyeong Kim and Kyong Park, Dietary Fat Intake and Risk of Colorectal Cancer: A Systematic Review and Me- ta-Analysis of Prospective Studies Nutrients 2018, 10, 1963;
  6. Russell J de Souza, Andrew Mente, Adriana Maroleanu, Adrian I Cozma,Vanessa Ha,Teruko Kishibe, Elizabeth Ule- ryk, Patrick Budylowski, Holger Schünemann,Joseph Beyene,Sonia S Anand. Intake of saturated and trans unsatura- ted fatty acids and risk ofall cause mortality, cardiovascular disease, and type 2 diabetes:systematic review and meta- analysis of observational studies, BMJ 2015;351:h3978.
  7. Jung Eun Lee, Dale F McLerran, Betsy Rolland, Yu Chen, Eric J Grant, Rajesh Vedanthan, Manami Inoue,
  8. Shoichiro Tsugane, Yu-Tang Gao, Ichiro Tsuji, Masako Kakizaki, Habibul Ahsan, Yoon-Ok Ahn, Wen-Harn Pan,Kotaro Ozasa, Keun-Young Yoo, Shizuka Sasazuki, Gong Yang, Takashi Watanabe, Yumi Sugawara, Faruque Parvez,Dong- Hyun Kim, Shao-Yuan Chuang, Waka Ohishi, Sue K Park, Ziding Feng, Mark Thornquist, Paolo Boffetta, Wei Zheng,Daehee Kang, John Potter, and Rashmi Sinha, Meat intake and cause-specific mortality: a pooled analysis of Asian prospective cohort studies, Am J Clin Nutr 2013; 98:1032–41.
  9. Klement and Kämmerer, Is there a role for carbohydrate restriction in the treatment and prevention of cancer? Nutrition & Metabolism 2011, 8:75. Mahshid Dehghan, Andrew Mente, Xiaohe Zhang, Sumathi Swaminathan, Wei Li, Viswanathan Mohan, Romaina Iq- bal, Rajesh Kumar,Edelweiss Wentzel-Viljoen, Annika Rosengren, Leela Itty Amma, Alvaro Avezum, Jephat Chifamba, Rafael Diaz, Rasha Khatib, Scott Lear,Patricio Lopez-Jaramillo, Xiaoyun Liu, Rajeev Gupta, Noushin Mohammadifard, Nan Gao, Aytekin Oguz, Anis Safura Ramli, Pamela Seron,Yi Sun, Andrzej Szuba, Lungiswa Tsolekile, Andreas Wiel- gosz, Rita Yusuf, Afzal Hussein Yusufali, Koon K Teo, Sumathy Rangarajan,Gilles Dagenais, Shrikant I Bangdiwala, Shofiqul Islam, Sonia S Anand, Salim Yusuf, on behalf of the Prospective Urban Rural Epidemiology(PURE) study in- vestigators, Associations of fats and carbohydrate intake with cardiovascular disease and mortality in 18 countries from five continents (PURE): a prospective cohort study 2017, The Lancet 390(10107)
  10. Alpana Ray, Mohamed Alalem, Bimal K Ray, Insulin signaling network in cancer, Indian J Biochem Bio- phys 2014 Dec;51(6):493-8.
  11. Michaela C Devries, Arjun Sithamparapillai, K Scott Brimble, Laura Banfield, Robert W Morton, and Stuart M Phillips, Changes in Kidney Function Do Not Differ between Healthy Adults Consuming Higher- Compared with Lo- wer- or Normal-Protein Diets: A Systematic Review and Meta-Analysis. The Journal of Nutrition, Volume 148, Issue 11, November 2018, Pages 1760–1775.
  12. Ya Liu, Fubin Liu, Liwen Zhang, Junxian Li, Wenjuan Kang, Mingli Cao, Fangfang Song & Fengju Song, Associa- tion between low density lipoprotein cholesterol and all-cause mortality: results from the NHANES 1999–2014, Natu- re Scientific Reports 11, 22111 (2021).
  13. Donnie Yance, What can Centenarians teach us about cholesterol levels and longevity, May 2021.
  14. Ravnskov U, de Lorgeril M, Diamond DM, Hama R, Hamazaki T, et al. The LDL paradox: Higher LDL-Choleste- rol is Associated with Greater Longevity. A Epidemiol Public Health. 2020; 3(1): 1040.

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