A natureza paradoxal das dietas dos caçadores-coletores: baseadas em carne, mas não aterogênicas


No início do século XX, estudos de campo sobre sociedades caçadoras-coletoras mostraram que esses grupos viviam geralmente livres de doenças cardiovasculares (DCV). Essa constatação atraiu a atenção de pesquisadores interessados em compreender como os padrões dietéticos dessas populações poderiam ajudar a prevenir as DCV no mundo moderno. Embora durante décadas se tenha acreditado que as dietas dos caçadores-coletoras seriam predominantemente vegetais, revisões mais recentes e rigorosas dos dados antropológicos e análises quantitativas mostraram o contrário: alimentos de origem animal representavam a principal fonte de energia desses povos, correspondendo, em média, a cerca de 65% a 68% da energia total consumida.

Apesar do consumo elevado de carne e gordura animal, essas populações não apresentavam os altos índices de aterosclerose e eventos cardiovasculares vistos em sociedades ocidentais contemporâneas. Essa aparente contradição, descrita como "o paradoxo da dieta dos caçadores-coletoras", levou os pesquisadores a examinarem outros aspectos da dieta e estilo de vida desses povos.

Os dados disponíveis revelam que o consumo de gordura entre caçadores-coletoras não só era semelhante, ou mesmo superior, ao padrão ocidental moderno, mas também qualitativamente diferente. A gordura ingerida continha maiores proporções de ácidos graxos monoinsaturados (MUFA) e poli-insaturados (PUFA), com destaque para a melhor relação entre ácidos graxos ômega-6 e ômega-3, um fator importante na prevenção de inflamação crônica e doença cardiovascular.

Além disso, as dietas desses povos apresentavam alto teor proteico (entre 19% e 35% da energia total) e baixo teor de carboidratos (22% a 40% da energia total), diferentemente das dietas ocidentais modernas, que tendem a ser ricas em carboidratos refinados. Estudos indicam que a substituição de carboidratos por proteínas pode melhorar o perfil lipídico, reduzindo concentrações de colesterol total, LDL, VLDL e triglicerídeos, ao mesmo tempo que eleva o HDL.

A distribuição de macronutrientes era acompanhada de um estilo de vida ativo, baixos níveis de estresse e ausência de fatores de risco como tabagismo e consumo excessivo de sal. Os caçadores-coletoras ingeriam ainda altos níveis de fibras e fitoquímicos, derivados principalmente de plantas selvagens menos processadas, que possuem baixo índice glicêmico e contribuíam para um melhor controle metabólico.

Outro ponto relevante destacado pelo estudo é que a composição corporal e a fisiologia dos hominídeos refletem adaptações a uma dieta baseada em carne. Evidências isotópicas extraídas de esqueletos de neandertais e humanos do Paleolítico indicam que suas dietas se assemelhavam às de carnívoros de topo, como raposas árticas e lobos. Reduções evolutivas no tamanho do intestino e modificações em vias metabólicas relacionadas ao processamento de ácidos graxos e aminoácidos sugerem que o consumo predominante de carne foi um traço importante na evolução humana.

Na prática, o estudo demonstra que o risco de DCV não está diretamente associado ao consumo de alimentos de origem animal, mas sim a fatores como a qualidade da gordura, os níveis de carboidratos refinados e o padrão geral da dieta e estilo de vida. Dietas com alto teor de proteína animal, baixo teor de carboidratos refinados e gorduras com bom perfil de ácidos graxos, associadas a um estilo de vida ativo e à ausência de tabagismo e consumo excessivo de sal, podem não apenas ser seguras, mas também protetoras contra doenças cardiovasculares.

Portanto, os dados sugerem que modelos dietéticos inspirados em populações caçadoras-coletoras podem ser úteis como base para estratégias nutricionais preventivas e terapêuticas no contexto moderno. Essa abordagem desafia a ideia amplamente difundida de que dietas ricas em carne necessariamente promovem doenças cardiovasculares e oferece uma nova perspectiva sobre as relações entre dieta, evolução humana e saúde cardiometabólica.

Fonte: https://doi.org/10.1038/sj.ejcn.1601353

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