A deficiência de vitamina D é amplamente reconhecida como um problema de saúde pública em regiões de alta latitude, onde a exposição à radiação UVB, necessária para a síntese cutânea da vitamina, é limitada durante boa parte do ano. No entanto, quando se trata dos povos indígenas do Ártico, especialmente os Inuítes, a questão se torna mais complexa — e, como demonstra o artigo de Peter Frost publicado na Études Inuit Studies, talvez até mal formulada.
Os Inuítes realmente apresentam deficiência?
Estudos recentes apontam que os níveis sanguíneos de 25(OH)D entre os Inuítes costumam estar abaixo dos valores considerados ideais por sociedades médicas canadenses, mesmo entre aqueles que seguem dietas tradicionais ricas em peixe e carne de caça. Apesar disso, registros médicos históricos mostram que, até meados do século XX, doenças como raquitismo eram extremamente raras entre os Inuítes, muito menos comuns do que entre populações vizinhas não indígenas.
Essa aparente contradição levou pesquisadores a propor que os Inuítes possam ter necessidades fisiológicas diferentes de vitamina D, resultantes de adaptações culturais e genéticas a um ambiente com baixa radiação UVB. Entre essas adaptações estariam:
- Aleitamento prolongado, com leite materno rico em β-caseína, que aumenta a biodisponibilidade do cálcio;
- Dieta rica em carne e pobre em cereais, o que minimiza a presença de ácido fítico, composto que reduz a absorção de minerais;
- Alterações genéticas que tornam o uso da vitamina D mais eficiente, como maior conversão para sua forma ativa e maior sensibilidade do receptor de vitamina D.
O impacto da mudança alimentar
O raquitismo começou a emergir nas comunidades Inuítes a partir dos anos 1920, inicialmente em Labrador, coincidentemente com a introdução de alimentos industrializados, redução no tempo de aleitamento e abandono da dieta tradicional. Essas mudanças alimentares, mais do que uma deficiência intrínseca de vitamina D, parecem estar na raiz dos casos modernos da doença.
Atualmente, grande parte da ingestão calórica dos Inuítes vem de produtos processados comprados em lojas, o que elevou o consumo de cereais ricos em ácido fítico e reduziu a oferta de carnes e peixes frescos. Estudos demonstram que mulheres Inuítes que ainda consomem ≥300g de alimentos tradicionais por dia apresentam níveis de vitamina D apenas ligeiramente superiores às que não o fazem, mas ambos os grupos ficam abaixo da ingestão recomendada de 15 µg/dia.
A controvérsia da suplementação em massa
Diante dessa situação, governos regionais e sociedades médicas canadenses passaram a recomendar a suplementação rotineira com vitamina D, inclusive para gestantes e lactantes. No entanto, Frost argumenta que essa abordagem pode ignorar diferenças fundamentais nas necessidades fisiológicas dos Inuítes e, pior, representar riscos à saúde.
A vitamina D é lipossolúvel e age mais como um hormônio do que como uma vitamina clássica. Doses excessivas não são facilmente excretadas, podendo se acumular no organismo. Estudos populacionais mostram uma curva em “U” para diversos desfechos de saúde — tanto níveis baixos quanto altos da vitamina estão associados a maior mortalidade, câncer, doenças cardiovasculares e, em modelos animais, envelhecimento precoce.
Além disso, estudos com populações indígenas revelaram que níveis considerados seguros para europeus podem já estar associados a efeitos adversos entre os Inuit, incluindo alterações no metabolismo da glicose e da função das células beta pancreáticas, mesmo em concentrações consideradas “baixas” pela medicina convencional.
Conclusão: adaptação ou deficiência?
Peter Frost propõe uma reinterpretação do que chamamos de “deficiência” de vitamina D entre os Inuítes. Em vez de impor um padrão universal, é necessário considerar a coevolução genética e cultural que moldou as necessidades fisiológicas desses povos ao longo de milênios. A combinação de dieta tradicional e aleitamento prolongado forneceu, por séculos, proteção eficaz contra o raquitismo sem a necessidade de suplementação.
Portanto, a solução pode não estar em adicionar comprimidos à rotina diária dos Inuit, mas sim em resgatar práticas alimentares ancestrais que promovem uma biodisponibilidade natural de nutrientes essenciais. E, mais importante, em reconhecer que a medicina personalizada deve começar pela compreensão da história evolutiva de cada povo.