Durante anos, a narrativa predominante em pesquisas sobre nutrição e microbiota intestinal tem sido a de que dietas ricas em gordura — especialmente de origem animal — são prejudiciais à saúde, em parte por causarem desequilíbrios na composição das bactérias intestinais. Essa visão é amplamente compartilhada por autoridades em saúde, como a European Society of Neurogastroenterology and Motility e o International Cancer Microbiome Consortium. Entretanto, o artigo de Sholl, Mailing e Wood propõe uma reinterpretação dessa narrativa à luz de uma característica fundamental do corpo humano: sua flexibilidade metabólica.
Entre Ratos e Rissóis: as Limitações da Pesquisa Translacional
Grande parte das evidências contra dietas high-fat (HF) vem de estudos pré-clínicos com animais, cujos modelos alimentares muitas vezes combinam gordura de baixa qualidade (como banha industrializada ou óleo de soja), açúcares refinados e ausência de fibras — o equivalente laboratorial à "junk food" americana. Além disso, os camundongos utilizados, como a linhagem C57BL/6, são geneticamente predispostos a ganhar peso em resposta a dietas ricas em gordura. Isso levanta questões sobre a validade dessas extrapolações para seres humanos, que apresentam uma variedade muito maior de padrões alimentares e de resposta metabólica.
Além dos modelos animais, estudos clínicos também tendem a agrupar alimentos muito diferentes sob um mesmo rótulo. Por exemplo, padrões alimentares classificados como “ricos em gordura” frequentemente incluem sobremesas industrializadas, carnes processadas, laticínios adoçados e alimentos pobres em fibras — uma associação que impede a análise isolada do papel de alimentos específicos, como carnes frescas ou ovos.
Flexibilidade Metabólica: a Chave Evolutiva para Entender o Intestino Humano
Ao contrário do que se supõe, o intestino humano é altamente adaptável. Nossa microbiota não é estática: ela se molda conforme o ambiente alimentar. Evidências de populações tradicionais como os Hadza da Tanzânia e os Inuítes do Ártico mostram que padrões sazonais ou permanentemente baixos em fibras vegetais não impedem a saúde intestinal. Pelo contrário, muitos desses grupos apresentam ausência de doenças crônicas comuns em populações ocidentais.
Essa capacidade de adaptação metabólica — chamada de flexibilidade metabólica — permite que o organismo alterne entre diferentes fontes de energia (carboidratos, gordura corporal, corpos cetônicos) conforme a disponibilidade de alimentos. E, como propõem os autores, é plausível que essa mesma flexibilidade se estenda à microbiota intestinal, que não apenas tolera variações no padrão alimentar, mas responde a elas de maneira funcional.
Dietas Cetogênicas: Novas Perspectivas sobre a Saúde Intestinal
O estudo revisa evidências de que dietas cetogênicas bem formuladas podem manter, ou até melhorar, a integridade da mucosa intestinal. Por exemplo, mesmo com menor produção de butirato — tradicionalmente considerado essencial para a saúde do cólon —, dietas cetogênicas aumentam a produção de isobutirato, beta-hidroxibutirato (bHB) e acilcarnitinas, que também servem como combustível e sinalizadores anti-inflamatórios.
O beta-hidroxibutirato, em especial, tem mostrado propriedades anti-inflamatórias relevantes, tanto no intestino quanto no sistema nervoso central. Além disso, evidências indicam que essas moléculas são capazes de substituir o butirato na função energética e imunológica da mucosa intestinal — uma revelação que desafia a suposição de que a saúde intestinal depende exclusivamente de carboidratos fermentáveis.
Casos Clínicos e Benefícios Potenciais
A dieta cetogênica tem sido estudada como terapia adjuvante em diversas condições clínicas com impacto intestinal. Em pacientes com esclerose múltipla, por exemplo, observou-se melhora da diversidade microbiana e função de barreira após seis meses de dieta cetogênica. Em casos de epilepsia, alterações específicas na microbiota induzidas pela cetose foram associadas ao efeito anticonvulsivante. Estudos iniciais em Alzheimer sugerem efeitos semelhantes, incluindo aumento de butirato e propionato, mesmo em dietas de baixo carboidrato.
Esses dados apontam para a importância de avaliar a microbiota não apenas por sua composição taxonômica, mas por suas funções metabólicas, adaptativas e imunológicas, especialmente em contextos terapêuticos.
Respondendo às Críticas: LPS, TMAO e Ácidos Biliares
Algumas críticas comuns às dietas HF referem-se ao aumento de compostos como:
- LPS (lipopolissacarídeos): embora refeições ricas em gordura possam aumentar modestamente os níveis séricos de LPS, há evidências de que a absorção via quilomícrons facilita sua neutralização hepática, com possível efeito protetor.
- TMAO (trimetilamina-N-óxido): frequentemente associado a risco cardiovascular, mas sua formação depende mais da composição da microbiota do que da quantidade de alimentos de origem animal. Bactérias como Bilophila podem degradar TMA, reduzindo a produção de TMAO.
- Ácidos biliares secundários: embora altos níveis possam afetar a permeabilidade intestinal, níveis fisiológicos estimulam a secreção de muco, têm efeito antimicrobiano e modulam positivamente a motilidade intestinal.
A produção de H₂S (gás sulfídrico), embora possa ser prejudicial em excesso, também tem efeitos protetores em baixas concentrações. Em casos de supercrescimento bacteriano produtor de H₂S, a introdução cautelosa de gordura ou a inclusão temporária de vegetais específicos pode ajudar a modular essa resposta.
Redirecionando a Pesquisa com Rigor e Contexto
Os autores finalizam com uma série de recomendações para melhorar o rigor científico no estudo da microbiota:
- Diferenciar claramente dietas HF industrializadas de dietas cetogênicas terapêuticas.
- Considerar o tipo de gordura, qualidade dos alimentos e contexto alimentar.
- Evitar generalizações a partir de estudos com modelos animais não representativos da fisiologia humana.
- Avaliar a funcionalidade da microbiota em vez de focar exclusivamente na diversidade ou na presença de espécies “benéficas” pré-definidas.
Sobretudo, é necessário superar o viés que coloca alimentos vegetais como inerentemente “bons” e os produtos de origem animal como “ruins”. A evolução humana, os dados antropológicos e a fisiologia indicam que o ser humano é biologicamente apto a prosperar com uma ampla variedade de padrões alimentares — inclusive os baseados em alimentos de origem animal.
