O debate global sobre o papel da pecuária na segurança alimentar e nas mudanças climáticas muitas vezes recai sobre as espécies animais em si — vacas, porcos, galinhas. No entanto, um estudo publicado pela Animal Frontiers propõe uma mudança de paradigma: a análise deve se concentrar não no animal isolado, mas no sistema de produção em que ele está inserido.
Essa mudança de perspectiva é fundamentada em uma lógica clara. Dois animais da mesma espécie podem ter impactos ambientais radicalmente distintos dependendo do sistema de criação ao qual pertencem. Por exemplo, o modelo GLEAM (Global Livestock Environmental Assessment Model), da FAO, mostra que um bovino confinado em sistema de engorda intensiva (feedlot) pode emitir cerca de 60 kg de CO₂ equivalente por kg de proteína, enquanto um bovino criado em sistema misto pode chegar a 361 kg CO₂ equivalente por kg de proteína. Ou seja, a escolha do sistema tem maior peso do que a espécie quando se fala em sustentabilidade.
Para tornar essa avaliação mais acessível e comparável entre países e sistemas, os pesquisadores desenvolveram a ferramenta interativa Animal Production System Evaluator (APSE), disponível gratuitamente online. A proposta da APSE é permitir que formuladores de políticas públicas, produtores, pesquisadores e a sociedade civil possam analisar os impactos ambientais e as contribuições nutricionais de diferentes sistemas de produção animal em um só lugar.
Avaliação multifacetada
A APSE integra múltiplas dimensões: uso de terra, emissões de gases de efeito estufa (GEE), contribuição nutricional para a cesta alimentar nacional e eficiência na conversão de alimento para consumo humano. Tudo isso pode ser visualizado em gráficos interativos, nos quais o usuário seleciona os indicadores no eixo X e Y, definindo, por exemplo, a quantidade de proteína ajustada por digestibilidade (DIAAS) versus a emissão de GEE por quilo de proteína.
Cada ponto representado no gráfico é um sistema de produção (como galinhas em sistema de quintal ou suínos em confinamento industrial), com o tamanho do círculo proporcional à sua produção e a cor representando a eficiência da conversão alimentar — verde para sistemas eficientes e vermelho para os mais ineficientes.
Personalização e relevância regional
Um grande diferencial da ferramenta é seu enfoque regionalizado. Ela não apresenta médias globais genéricas, mas sim dados ajustados por região, levando em conta as práticas locais, recursos naturais disponíveis e padrões alimentares da população. Entre as opções de comparação, o usuário pode selecionar cestas alimentares baseadas em dietas típicas de países de alta renda, da China ou dietas de menor custo nutricionalmente adequadas, como a dieta CONA (Cost of Nutrient Adequacy Diet).
Com essa abordagem, a APSE consegue traduzir a complexidade do sistema alimentar em uma linguagem visual e funcional, promovendo o entendimento de como diferentes estratégias de produção afetam a segurança alimentar e o meio ambiente.
O dilema da competição ração-alimento
Outro elemento-chave incluído na análise é a chamada “competição ração-alimento” — um conceito que mede o quanto o sistema usa proteína vegetal que poderia ser consumida diretamente por humanos para alimentar os animais. Sistemas com alta competição tendem a ser menos sustentáveis. A ferramenta categoriza essa competição por cores: verde (baixo impacto), amarelo (médio), laranja e vermelho (alto impacto), permitindo que o usuário visualize rapidamente os sistemas que mais pressionam a cadeia alimentar.
Implicações para políticas públicas
O estudo deixa claro que políticas sustentáveis para a pecuária devem ser desenhadas com base em dados específicos de sistemas de produção e não em generalizações baseadas apenas na espécie animal. Isso implica em priorizar investimentos em sistemas mais eficientes e com menor impacto ambiental, o que, segundo os autores, é essencial para alcançar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU.
Além disso, a ferramenta APSE representa um modelo de transparência científica aplicada à política agrícola. Ao tornar os dados acessíveis e visualmente interpretáveis, ela promove a tomada de decisão baseada em evidências — algo fundamental em tempos de polarização no debate sobre consumo de alimentos de origem animal.
Considerações finais
A transição para sistemas alimentares mais sustentáveis exige uma visão integrada que leve em conta tanto os aspectos nutricionais quanto os ambientais. A ferramenta APSE é uma iniciativa importante nesse caminho, permitindo que os diversos atores do sistema alimentar analisem e otimizem suas escolhas.
Como os próprios autores enfatizam, a eficácia da ferramenta dependerá da qualidade dos dados disponíveis. Por isso, o contínuo aprimoramento da base de dados, com a colaboração de instituições científicas de todo o mundo, será essencial para sua consolidação como referência em sustentabilidade pecuária.
A APSE não é apenas uma plataforma técnica — é um convite para repensar como produzimos e consumimos alimentos de origem animal, com base em ciência e responsabilidade.
Fonte: https://doi.org/10.1093/af/vfaf008