O trabalho revisado mapeia como diretrizes clínicas de diferentes países orientam a ingestão diária de proteína para adultos com diabetes tipo 2 e doença renal crônica (DRC). A equipe analisou 24 diretrizes publicadas até 31 de janeiro de 2023, avaliando tanto a qualidade metodológica (AGREE II) quanto a qualidade das recomendações (AGREE REX). O achado central é a ausência de consenso: entre as diretrizes de maior qualidade, algumas recomendam limitar a proteína a 0,8 g/kg/dia em estágios não dialíticos, enquanto outras não recomendam restrição em DRC inicial (estágios 1–3) ou na presença de micro/macroalbuminúria. Essa divergência se mantém apesar do uso de ensaios clínicos semelhantes como base de evidência.
Por que isso importa
Em pessoas com diabetes tipo 2, a DRC é frequente e pode evoluir para necessidade de diálise ou transplante. A proteína alimentar tem papel duplo nesse cenário: por um lado, maior ingestão pode intensificar a hiperfiltração glomerular e contribuir para alterações metabólicas (hiperfosfatemia, hipercalemia) em DRC avançada; por outro, em idosos — grupo muito representado entre diabéticos com DRC — proteína adequada é crucial para prevenir sarcopenia e perda funcional. As decisões sobre “quanto” proteína prescrever precisam, portanto, equilibrar riscos renais e manutenção de massa e força muscular, tarefa que se complica quando as diretrizes não convergem.
Como o estudo foi conduzido
- Busca e seleção: foram interrogadas PubMed, Embase e Cochrane, além de sites institucionais, seguindo PRISMA para revisões de escopo.
- Critérios: incluíram-se diretrizes de prática clínica para diabetes tipo 2 que trouxessem recomendações dietéticas específicas para DRC em adultos; versões mais novas substituíram as antigas; textos não ingleses foram excluídos se não houvesse tradução.
- Avaliação de qualidade: aplicaram-se os instrumentos AGREE II (escopo, participação de partes interessadas, rigor, clareza, aplicabilidade e independência editorial) e AGREE REX (aplicabilidade clínica, valores/preferências e implementabilidade).
- Rastreamento da evidência: para as diretrizes melhor pontuadas, os autores remontaram as referências (até três níveis) e classificaram a força da evidência (A/B/C) segundo a taxonomia ESC/EAS.
O que as melhores diretrizes dizem — e onde divergem
Entre as cinco diretrizes que atingiram simultaneamente boa qualidade no AGREE II e no AGREE REX, emergiram duas linhas principais de recomendação para adultos com diabetes tipo 2 e DRC não dialítica:
Restrição para até 0,8 g/kg/dia
- Padrões 2023 da ADA — propõem máximo de 0,8 g/kg/dia para DRC não dependente de diálise, baseando-se em múltiplos ensaios clínicos randomizados e meta-análises, com nível de evidência A. Link: doi:10.2337/dc23-S011.
- Consenso ADA–KDIGO 2022 — alinha-se ao teto de 0,8 g/kg/dia em DRC sem diálise; contudo, parte da trilha de evidências remete a capítulo de livro não acessível online, dificultando a verificação do nível de evidência. Link: doi:10.1016/j.kint.2022.08.012.
- Diretrizes Diabetes Canada 2018 — recomendam até 0,8 g/kg/dia em pessoas com diabetes e DRC, também ancoradas em referências que incluem fontes pouco acessíveis.
Sem restrição proteica em DRC inicial (estágios 1–3) ou com micro/macroalbuminúria
- SIGN 2017 — não recomenda proteína <0,8 g/kg/dia em estágios 1–3 de DRC, com base em múltiplos ECRCs (nível A).
- SEMDSA 2017 — não recomenda reduzir <0,8 g/kg/“peso ideal” em adultos com micro/macroalbuminúria, também apoiada em ECRCs e revisões sistemáticas.
- Síntese: Em igual patamar metodológico, parte das diretrizes conclui por limitar proteína a 0,8 g/kg/dia; outra parte, julgando os ensaios pequenos e de curta duração, considera a evidência insuficiente para impor restrição nos estágios iniciais. O paradoxo decorre menos das diferenças nos estudos citados e mais de como cada grupo avaliou a robustez e a aplicabilidade desses estudos.
Onde entra a KDOQI (2020) e o tipo de proteína
A KDOQI 2020 propôs para pessoas com DRC 3–5 e diabetes uma ingestão de 0,6–0,8 g/kg/dia, e para DRC em diálise (DRC 5D) 1,0–1,2 g/kg/dia para manter estado nutricional; em pacientes sob risco de hipo/hiperglicemia, recomendam considerar ingestões proteicas mais altas para auxiliar o controle glicêmico. Importante: tais pontos foram apresentados como opiniões especializadas (nível C), refletindo a baixa qualidade/quantidade de evidências formais. Link: doi:10.1053/j.ajkd.2020.05.006.
Quanto ao tipo de proteína (animal versus vegetal), não há base robusta para prescrição de um tipo específico em DRC não dialítica. A KDOQI menciona possíveis benefícios de padrões vegetarianos em marcadores como fósforo e FGF-23 em não dialíticos, mas sem evidência suficiente para uma diretriz universal. Em resumo, a qualidade e a quantidade de estudos ainda não permitem recomendações taxativas por tipo de proteína.
Qualidade das diretrizes e transparência
A média de desempenho das 24 diretrizes foi heterogênea:
- Escopo/propósito e clareza foram bem cobertos;
- Rigor de desenvolvimento variou de 14% a 96% (média 59%);
- Independência editorial teve cobertura média de 54%, com seis diretrizes sem declaração de financiamento/conflitos — um alerta para julgamentos de confiabilidade. Mesmo entre as melhores, persistiu reporte insuficiente de como a evidência foi identificada, avaliada e traduzida em recomendações quantitativas.
Implicações práticas
Diante do quadro atual, a leitura clínica mais prudente — e compatível com as melhores diretrizes resumidas — envolve:
- Individualizar a meta proteica considerando estágio da DRC, idade, estado nutricional, risco de sarcopenia e metas glicêmicas;
- Atentar para a DRC 5D, em que a necessidade proteica se eleva (1,0–1,2 g/kg/dia) para evitar desnutrição;
- Evitar decisões rígidas baseadas apenas em rótulos (p.ex., “restrição obrigatória para todos”), já que a consistência da evidência para impor limites universais em estágios iniciais é debatida;
- Exigir transparência metodológica ao aplicar recomendações: quando a diretriz não explicita claramente como chegou ao número (p.ex., 0,8 g/kg/dia), a decisão deve ser contextualizada pelo quadro clínico e preferências do paciente.
O que ainda falta na ciência
O conjunto analisado aponta lacunas importantes:
- Ensaios maiores e de longa duração em DRC inicial e população idosa;
- Medidas de desfecho clínico “duros” (progressão de DRC, tempo até diálise, mortalidade), além de marcadores intermediários;
- Documentação sistemática do processo que liga evidência às recomendações (p.ex., uso consistente de GRADE, RIGHT), reduzindo interpretações divergentes a partir dos mesmos estudos.
Conclusão
A revisão de escopo demonstra que não há consenso internacional sobre a quantidade diária de proteína em adultos com diabetes tipo 2 e DRC não dialítica. Entre diretrizes de alta qualidade, coexistem recomendações de limitar a 0,8 g/kg/dia e recomendações sem restrição em estágios iniciais — frequentemente apoiadas nos mesmos estudos, porém interpretados de modos distintos. A mensagem para a prática é de cautela e individualização, privilegiando o estado nutricional, a segurança metabólica e a evolução renal, enquanto a comunidade científica investe em ensaios clínicos robustos e em melhor reporte metodológico para orientar decisões com maior certeza.
