Durante décadas, treinadores e atletas ouviram que “queimar carboidratos” seria essencial para correr rápido e que “queimar gordura” serviria mais para longos volumes em intensidade moderada. Essa visão, popularizada pelo chamado cross-over concept, levou muitos a ajustar refeições pré-prova para “ditar” qual combustível o corpo usaria. Um estudo recém-publicado no periódico Nutrients testou essa ideia em condições controladas, perguntando algo direto: se a refeição pré-exercício muda claramente o combustível oxidado (carboidrato vs. gordura), isso muda o tempo final em provas de 5 km e 10 km?
O que o estudo quis verificar
O objetivo foi avaliar, no estado alimentado, se preferir oxidar mais gordura (LCHF: low-carb, high-fat) ou mais carboidrato (HCLF: high-carb, low-fat) altera o desempenho de corredores recreacionais experientes em time trials (TT) de 5 km e 10 km. A escolha do estado alimentado e o controle de dieta/treino buscaram reduzir confundidores como glicogênio e hipoglicemia induzida pelo exercício (EIH).
Quem participou
Foram 30 corredores (duas coortes independentes; 15 em cada estudo), homens, 18–35 anos, VO₂max ≥ 40 mL/kg/min, com experiência de corrida e tempos de referência recentes abaixo de 28 min (5 km) ou 55 min (10 km). Todos consumiam uma dieta mista típica (Standard American Diet) antes do estudo.
Como foi o desenho do estudo
- Ensaio randomizado, simples-cego, cruzado (crossover).
- Quatro visitas: familiarização + VO₂max; um TT “baseline” sem barra; e duas visitas experimentais com refeição LCHF ou HCLF (~1.000 kcal) três horas antes do TT, em ordem contrabalançada e separadas por 1 semana.
- Medições seriadas: gases respiratórios (VO₂, VCO₂, RER), oxidação de carboidrato e gordura, glicose, lactato, R-β-hidroxibutirato (R-βHB), FC, RPE (esforço percebido), afeto, sede e plenitude gástrica.
- Provas: TT de 5 km (Estudo 1) e 10 km (Estudo 2) em esteira, com controle visual do tempo/velocidade para evitar pacing por feedback.
O que foi comparado nas refeições
- HCLF: alta em carboidrato e baixa em gordura.
- LCHF: baixa em carboidrato e alta em gordura, contendo 20 g de TCM (MCT) para modular levemente corpos cetônicos.
- Ambas eram isocalóricas e preparadas para aparência/sabor semelhantes, minimizando vieses de expectativa.
Principais resultados
1) Desempenho (tempo final):
- Sem diferenças entre LCHF e HCLF nos 5 km (p = 0,646) e 10 km (p = 0,118; tendência numérica, porém não significativa). Em termos práticos, trocar o combustível predominante não mudou o resultado da prova nessas condições.
2) Metabolismo durante o esforço:
- LCHF reduziu o RER (≈4–5% mais baixo) e aumentou a oxidação de gordura (≈58–77% mais alta), com queda correspondente na oxidação de carboidrato no 10 km.
- HCLF elevou glicose capilar no repouso pré-exercício (≈9–13% maior que LCHF; no Estudo 2 o aumento foi ~30% vs. basal).
- R-βHB subiu modestamente com LCHF (picos ~0,3 mM), enquanto lactato aumentou com o exercício em ambos os grupos, como esperado.
3) Respostas perceptivas e cardiorrespiratórias:
- FC, VO₂, ventilação, RPE e afeto: sem diferenças relevantes entre condições.
- Plenitude gástrica: no Estudo 1, LCHF foi percebida como ~30–35% mais “satisfatória” que HCLF; a sede aumentou com o exercício em ambos os protocolos.
O que isso significa (interpretação fiel ao artigo)
Mesmo alterando profundamente o combustível oxidado (mais gordura com LCHF; mais carboidrato com HCLF), o tempo de prova não se alterou. Isso questiona a ideia de que a “preferência” de substrato oxidado seja um determinante primário do desempenho em provas de média distância (< 60 min), no estado alimentado e com glicogênio controlado. Em outras palavras, eficiência de corrida, pacing, condicionamento, tolerância gastrointestinal e outros fatores podem pesar mais no tempo final do que “forçar” o corpo a queimar A ou B em provas desse tipo.
Detalhes que enriquecem a leitura
- Individualidade biológica: a análise exploratória por indivíduo mostrou que ≈73% dos participantes correram um pouco mais rápido com HCLF e ≈27% com LCHF — sem alterar a conclusão geral (média de grupo sem diferença). Isso sugere espaço para estratégias personalizadas, mas não um efeito médio robusto de “mudar o combustível” para ganhar tempo.
- Cetose leve, sem impacto no tempo: os 20 g de TCM elevaram R-βHB modestamente, abaixo da faixa típica de cetose nutricional (>0,5 mM), sem efeito no desempenho das TTs.
Limitações reconhecidas pelos autores
- Amostra masculina; generalização para mulheres requer estudos específicos.
- Agudo (refeição prévia) em corredores com dieta habitual mista e rica em carboidratos; adaptação crônica a LCHF/CKD pode deslocar o pico de oxidação de gordura para intensidades mais altas, mas não foi o alvo aqui.
- Simples-cego; diferenças de saciedade poderiam “denunciar” a condição, embora RPE/afeto não tenham diferido.
- Duas coortes (5 km e 10 km) recrutadas separadamente, adicionando variabilidade entre estudos.
Implicações práticas (dentro do que o artigo sustenta)
Para corridas de 5–10 km, < 60 min, no estado alimentado, manipular a refeição para “forçar” a oxidação de gordura ou carboidrato não muda o tempo final, em média. Assim, a decisão pode priorizar tolerância gastrointestinal, sensação de saciedade, rotina do atleta e logística, sem receio de “prejudicar” o desempenho por oxidar mais gordura — ou carboidrato — nesse contexto específico.
Conclusão
Em corredores recreacionais experientes, refeições pré-prova isocalóricas que mudam nitidamente a oxidação de substratos não alteraram o desempenho em 5 km e 10 km. O estudo reforça que oxidar mais carboidrato ou mais gordura, por si só, não é o fator decisivo em provas de média distância no estado alimentado, quando potenciais confundidores como glicogênio e hipoglicemia induzida pelo exercício são controlados.
Fonte: https://doi.org/10.3390/nu17172771
