Uma dieta carnívora no tratamento da diarreia flagelada, também conhecida como giardíase (1924)


No início do século XX, a medicina ainda buscava estratégias eficazes para lidar com infecções intestinais de origem protozoária, como aquelas causadas por Giardia lamblia e Trichomonas hominis. Em 1924, Robert W. Hegner, professor da Universidade Johns Hopkins, publicou um estudo pioneiro explorando uma abordagem curiosa: a adoção de uma dieta exclusivamente carnívora como ferramenta terapêutica para “diarreia flagelada”.

Evidências observacionais em animais

Hegner baseou sua hipótese inicial em estudos conduzidos em ratos de laboratório. Animais que foram alimentados exclusivamente com dieta carnívora durante 174 dias estavam livres de protozoários intestinais, enquanto aqueles mantidos em dietas ricas em carboidratos apresentavam infecções abundantes por giardias e tricomonas. Em experimentos adicionais, ao submeter ratos infectados a uma semana de alimentação carnívora, observou-se que a grande maioria apresentou redução de 90% dos parasitas Giardia e 98,2% dos Trichomonas.

Esse padrão parecia se repetir entre os mamíferos de forma geral. Na literatura de protozoologia da época, protozoários intestinais eram raramente identificados em carnívoros selvagens, enquanto apareciam com mais frequência em animais onívoros e herbívoros.

Aplicação clínica: experiências em humanos

Com base nesses achados, Hegner sugeriu que médicos considerassem a dieta carnívora como tratamento experimental para humanos com protozoários intestinais. Ele relatou três casos iniciais:

  1. Caso 1 (infecção por Trichomonas): o paciente sofria há anos de diarreia crônica, com fezes líquidas abundantes em protozoários. Três dias após iniciar a dieta rica em carnes e ovos, as evacuações se normalizaram e os protozoários desapareceram das amostras fecais. Após 32 dias, o paciente continuava sem sintomas e sem presença detectável de parasitas.
  2. Casos 2 e 3 (infecção por Giardia lamblia): a resposta foi mais lenta. Um paciente, monitorado por sete semanas, apresentou redução progressiva da carga de cistos de Giardia de 6 por campo microscópico, antes do tratamento, para cerca de 0,5 após o período. Outro paciente, monitorado durante quatro anos, também mostrou redução, embora mais modesta, com melhora das fezes (passando de líquidas para semifirmes).

Os dados sugeriam que a dieta carnívora alterava o ambiente intestinal de forma a desfavorecer a sobrevivência desses protozoários, com impacto mais rápido sobre parasitas que vivem no lúmen do intestino grosso (Trichomonas, Chilomastix) e efeito menos imediato em protozoários que residem no intestino delgado (Giardia), menos expostos à microbiota e ao conteúdo intestinal alterado pela dieta.

Mecanismo proposto e questionamentos

Hegner observou que esses resultados poderiam ajudar a esclarecer se os protozoários eram realmente a causa primária da diarreia ou se proliferavam secundariamente em um ambiente intestinal previamente alterado. O desaparecimento dos sintomas e dos parasitas após a mudança alimentar sugeria fortemente o papel patogênico dos flagelados.

No entanto, ele também reconheceu as limitações de sua evidência: os dados clínicos ainda eram escassos e dependiam de maior colaboração de médicos para confirmar os achados. As dietas sugeridas eram ricas em carnes, ovos, bacon, fígado e derivados, com uso moderado de vegetais e frutas em pequenas quantidades e consumo mínimo de carboidratos refinados e açúcares.

Considerações atuais

Hoje, sabemos que a Giardia lamblia é um protozoário patogênico reconhecido, transmitido principalmente pela água contaminada e que a diarreia flagelada deve ser tratada com medicamentos específicos como o metronidazol. Apesar disso, o estudo de Hegner oferece uma visão histórica interessante de como hipóteses dietéticas foram testadas na prática clínica antes da era dos antibióticos modernos.

Além disso, seu trabalho antecipa discussões contemporâneas sobre a influência da dieta na composição e função da microbiota intestinal, algo que continua sendo explorado em pesquisas sobre infecções intestinais e distúrbios gastrointestinais funcionais.

Fonte: http://doi.org/10.1001/jama.1924.02660010027006

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