Recentemente, um artigo publicado na revista Nutrition and Cancer com o título “Ketogenic Diets Are Associated with an Elevated Risk for All Cancers: Insights from a Cross-Sectional Analysis of the NHANES 2001–2018” gerou grande repercussão ao sugerir que dietas cetogênicas estariam associadas a um risco aumentado de câncer. Porém, uma análise detalhada do próprio estudo revela importantes falhas metodológicas e interpretativas que limitam a validade dessa conclusão.
Contextualização do estudo
O trabalho utilizou dados do National Health and Nutrition Examination Survey (NHANES), abrangendo o período de 2001 a 2018. Foram analisados 43.838 adultos com dados completos de dieta e saúde, tendo como desfecho principal o autorrelato de diagnóstico prévio de câncer. Para estimar a adesão a uma dieta cetogênica, foi empregado o Dietary Ketogenic Ratio (DKR), um índice matemático que pondera a proporção de macronutrientes com potencial cetogênico e anticetogênico.
Principais achados relatados
- Os indivíduos classificados no quartil mais alto de DKR apresentaram um odds ratio (OR) de 1,29 (IC 95% 1,08–1,34; p = 0,005) para câncer autorreferido, em comparação aos do quartil mais baixo.
- A associação observada seguiu um padrão não-linear, com perda de significância estatística em valores de DKR ≥ 0,44.
Embora esses resultados pareçam sugerir um risco aumentado, uma análise crítica demonstra sérias falhas que invalidam a conclusão de que dietas cetogênicas reais estariam implicadas no aumento do risco de câncer.
Falhas metodológicas críticas identificadas
Definição inadequada da exposição: DKR e consumo real de carboidratos
O estudo define os participantes "mais cetogênicos" como aqueles no quartil superior de DKR, mas esses indivíduos apresentavam consumo médio de 181 g de carboidratos/dia (~37% das calorias). Para contextualizar:
- Dietas cetogênicas clássicas restringem carboidratos a menos de 50 g/dia, frequentemente menos de 30 g/dia.
- Ou seja, nem mesmo os participantes com maior DKR estavam praticando dietas compatíveis com cetose nutricional.
Portanto, o estudo não investigou dietas cetogênicas reais, tornando o título do artigo enganoso.
Utilização de um índice obscuro e pouco validado (DKR)
O DKR é uma métrica pouco difundida e sua aplicação populacional não está padronizada. Além disso:
- O estudo encontrou associação somente em DKR < 0,44, faixa que representa dietas longe da proporção cetogênica típica (≥2,0).
- Acima de DKR 0,44 não houve associação significativa.
Isso indica que a suposta associação se limita a padrões dietéticos que sequer configuram dietas cetogênicas formais.
Avaliação dietética baseada em apenas dois recordatórios de 24 horas
A coleta alimentar foi feita por autorrelato de dois dias não consecutivos:
- Este método está sujeito a viés de memória e grande variação intraindividual.
- Não reflete hábitos dietéticos habituais ou adesão sustentada a longo prazo, imprescindível para avaliar os efeitos reais da dieta cetogênica no metabolismo e na saúde.
Desfecho autorreferido e sem especificação de tipos de câncer
O diagnóstico de câncer foi identificado por autorrelato:
- Não há confirmação clínica, nem distinção por tipos de câncer.
- Isso reduz a validade do desfecho e impede inferências sobre associações específicas.
Potenciais confundidores não controlados
Apesar dos ajustes multivariados (idade, sexo, IMC, tabagismo, diabetes, entre outros), o estudo não considerou:
- Alterações dietéticas pós-diagnóstico de câncer (causalidade reversa).
- Fatores de risco não capturados no modelo (exposição ambiental, histórico familiar, nível de atividade física).
Esses elementos podem ter distorcido as associações observadas.
Generalização indevida dos resultados
A população do NHANES representa a média da população dos EUA:
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A maioria dos participantes não estava em dieta cetogênica e sequer buscava cetose terapêutica.
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Portanto, os achados não podem ser extrapolados para indivíduos que seguem dietas cetogênicas rigorosamente planejadas, como aquelas utilizadas em contextos terapêuticos ou clínicos supervisionados.
Interpretação inadequada dos próprios resultados
Embora o artigo afirme haver associação entre "dietas cetogênicas" e maior risco de câncer, os próprios dados mostram que:
- A associação desaparece justamente nos níveis que começariam a refletir dietas cetogênicas reais.
- Os participantes do quartil mais alto de DKR estavam, na realidade, consumindo carboidratos em níveis muito superiores aos limiares necessários para cetose nutricional.
Em outras palavras, o título do estudo não reflete o conteúdo e as limitações claras dos dados analisados.
Conclusão da análise crítica
O estudo apresenta sérias falhas metodológicas que comprometem a validade da associação relatada entre dietas cetogênicas e maior risco de câncer:
- Os participantes classificados como mais "cetogênicos" não seguiam dietas cetogênicas reais.
- O índice DKR utilizado não foi capaz de identificar adequadamente quem realmente estava em cetose nutricional.
- O desenho transversal, coleta dietética limitada e desfecho autorreferido impedem inferência causal confiável.
Portanto, não se pode concluir, com base neste estudo, que dietas cetogênicas bem conduzidas e supervisionadas aumentem o risco de câncer.
Essas limitações ressaltam a necessidade de:
- Ensaios clínicos randomizados e prospectivos.
- Avaliações precisas da cetose (ex.: corpos cetônicos sanguíneos).
- Diferenciação de tipos de câncer e ajustes rigorosos para confundidores.
Até que essas lacunas sejam preenchidas, o presente estudo não oferece evidência robusta nem justificativa para modificar práticas clínicas ou recomendações sobre dietas cetogênicas.
