Na visão tradicional da ciência nutricional, a fibra alimentar ocupa papel central na saúde intestinal por supostamente ser indispensável para a produção de butirato — um ácido graxo de cadeia curta (AGCC) considerado essencial para o funcionamento e a integridade do cólon. Assim, dietas que restringem severamente o consumo de fibra, como a dieta cetogênica ou carnívora, são frequentemente vistas com desconfiança, principalmente pela ideia de que ficariam desprovidas de uma fonte fundamental de butirato. No entanto, um exame cuidadoso das evidências mostra que essa preocupação pode ser exagerada e que existem caminhos alternativos para a produção e os efeitos do butirato, inclusive na ausência total de fibra dietética.
De onde vem o butirato?
Em termos dietéticos diretos, o alimento mais associado ao fornecimento de butirato é a manteiga, cujo nome em inglês (“butter”) deriva justamente de “butyric acid” (ácido butírico). Entretanto, a concentração de butirato na manteiga é relativamente baixa: cerca de 3–4% do seu peso. Para alcançar os níveis de butirato que normalmente se estima serem produzidos no intestino (>200 mmol/dia, segundo Sen et al. 2006), uma pessoa precisaria consumir aproximadamente meio quilo de manteiga diariamente, algo impraticável.
Isso nos leva à questão: seria a fibra a única alternativa prática para garantir a produção intestinal de butirato? E se sim, como explicar a boa saúde intestinal de populações e espécies animais que vivem sem consumir fibras?
Carnívoros como modelo: felinos, caninos e “fibras animais”
Carnívoros como cães e felinos têm cólon, mas sua dieta natural é composta quase exclusivamente de carne e partes de animais — sem fibras vegetais. Apesar disso, eles não apenas mantêm cólons saudáveis como também não estão, em geral, em cetose permanente, a menos que enfrentem restrição calórica. Isso indica que ou seus cólons não precisam de butirato, ou há outras fontes e vias para sua produção além da fibra vegetal fermentável.
A resposta reside no conceito de “fibra animal”. Elementos como colágeno, caseína e glucosamina, presentes em tecidos conjuntivos e partes menos digestíveis das presas, alcançam o cólon desses animais e servem de substrato para fermentação por suas microbiotas. Estudos com guepardos demonstraram que essas proteínas e estruturas resultam em produção de butirato em níveis comparáveis aos obtidos com fibras vegetais fermentáveis como frutooligossacarídeos (Depauw et al. 2012).
Além disso, diversos estudos demonstraram que aminoácidos isolados — mesmo em humanos — também são substratos para a produção de AGCC, incluindo butirato, no intestino grosso (Ras et al. 1988; Vinturache et al. 2014; Dai et al. 2015; Neis et al. 2015; Wierdsma et al. 2017). Embora ainda não haja consenso sobre quantidades exatas que essa via pode produzir, está bem documentado que a produção de butirato a partir de aminoácidos e proteínas incompletamente digeridas é real e relevante.
Um estudo clássico conduzido por Banta et al. (1979) comparou diretamente cães alimentados com dietas ricas em fibras versus dietas exclusivamente carnívoras. O resultado foi surpreendente: os cães alimentados apenas com carne produziam quase a mesma quantidade de ácidos graxos voláteis (outro termo para AGCC) no cólon que os cães recebendo fibras.
Portanto, mesmo sem ingestão de fibras vegetais, há produção significativa de butirato intestinal em carnívoros e, por analogia plausível, em humanos com dietas carnívoras ou cetogênicas.
Substituição funcional: β-hidroxibutirato e butirato
Outro aspecto importante é o potencial de substituição funcional entre butirato e β-hidroxibutirato (BHB), o principal corpo cetônico gerado pelo metabolismo cetogênico. Muitas das funções protetoras atribuídas ao butirato, especialmente as ligadas à inibição de histona deacetilases (HDAC) e regulação epigenética da inflamação e da proliferação celular, são compartilhadas pelo β-hidroxibutirato.
Por exemplo:
- β-hidroxibutirato atua sobre receptores como o GPR109A, também sensível ao butirato.
- Tanto o butirato quanto o β-hidroxibutirato inibem HDAC, um mecanismo molecular que se acredita contribuir para prevenção de câncer colorretal.
- Em modelos experimentais, a administração sistêmica de butirato (absorvido pela circulação e metabolizado no fígado) parece ser tão ou mais eficaz no tratamento de colite que a aplicação tópica direta no cólon, sugerindo que seus efeitos podem ser mediados por vias sistêmicas e não exclusivamente locais.
Esse último ponto levanta a hipótese de que o β-hidroxibutirato pode não apenas replicar, mas até ser o verdadeiro mediador fisiológico de parte dos benefícios tradicionalmente atribuídos ao butirato derivado da fibra.
Populações humanas com dietas de base animal
Embora não discutido diretamente no estudo original, vale lembrar que diversas sociedades tradicionais prosperaram durante séculos com dietas quase exclusivamente animais e com ingestão mínima e esporádica de plantas. Esses grupos, como os Inuítes do Ártico, apresentavam boa saúde intestinal e não evidenciavam taxas elevadas de câncer colorretal ou colites ulcerativas, mesmo com ingestão de fibra próxima de zero.
Esse dado antropológico reforça a ideia de que a fibra não é um requisito universal para integridade da mucosa colônica ou para prevenção de doenças intestinais.
Em resumo
Apesar da crença disseminada de que “sem fibra não há butirato e, portanto, não há saúde intestinal”, as evidências sugerem uma realidade mais complexa e flexível:
- Animais carnívoros produzem butirato a partir da fermentação de aminoácidos e componentes de tecidos animais parcialmente digeridos (“fibra animal”).
- Humanos também exibem fermentação de aminoácidos em AGCC no intestino grosso, ainda que as quantidades exatas sejam mal quantificadas.
- Dietas carnívoras e cetogênicas promovem elevação sustentada de β-hidroxibutirato, um metabólito que compartilha vários dos efeitos benéficos moleculares atribuídos ao butirato.
- A boa saúde intestinal de populações humanas historicamente sem fibra vegetal indica que a dependência de butirato derivado de fibra pode ter sido superestimada.
Portanto, embora a fibra seja um substrato eficiente para produção de butirato no intestino, não se pode mais afirmar que ela seja a única via para geração ou obtenção dos efeitos biológicos associados ao butirato. Na prática clínica e na discussão científica atual, é fundamental reavaliar as recomendações sobre fibra à luz dessas evidências e considerar que uma dieta cetogênica bem planejada pode manter e até promover saúde intestinal sem depender de fibras vegetais.
Fonte: https://www.mostly-fat.com/2017/11/does-ketogenic-diet-confer-benefits-of-butyrate/
