O pior carboidrato para a glicemia de que você provavelmente nunca ouviu falar


Quando o “sem açúcar” não conta toda a história

Ao se falar em carboidratos, costuma-se dividir os alimentos em açúcares simples (monossacarídeos e dissacarídeos) e carboidratos complexos (polissacarídeos). Glucose e frutose são monossacarídeos rapidamente absorvidos; sacarose (açúcar de mesa) é um dissacarídeo formado por glicose + frutose.

Já os “carboidratos complexos” são cadeias mais longas de glicose e outros açúcares. Em teoria, isso sugeriria digestão mais lenta, mas na prática isso depende muito do tipo de molécula, do processamento industrial e da matriz do alimento.

Entre esses carboidratos complexos existe um que quase não aparece em conversas do dia a dia, mas que tem impacto muito rápido na glicemia, frequentemente maior que o da própria glicose pura: a maltodextrina. E, ainda assim, ela aparece com frequência em produtos “sem açúcar” e “light”.

Índice glicêmico: o pano de fundo

O índice glicêmico (IG) classifica alimentos ricos em carboidratos de acordo com a velocidade e a intensidade com que aumentam a glicose no sangue em comparação com a glicose pura, que recebe valor 100.(Wikipedia)

De forma geral:

  • IG alto (≥ 70) – carboidratos rapidamente digeridos e absorvidos, que geram elevações rápidas e altas da glicemia.
  • IG médio (56–69) – resposta intermediária.
  • IG baixo (≤ 55) – digestão mais lenta, com elevações menores e mais graduais.

Segundo tabelas internacionais de IG, a glicose (dextrose) é usada como padrão com IG = 100, enquanto a sacarose (açúcar de mesa) costuma ficar em torno de 65–70, dependendo do estudo.

É importante destacar que, nos últimos anos, vários trabalhos mostraram uma grande variação individual nas respostas glicêmicas pós-prandiais aos mesmos alimentos. Estudos com monitorização contínua de glicose e modelos personalizados mostram que pessoas diferentes podem ter respostas bastante distintas ao mesmo alimento, e que modelos que consideram microbiota, composição corporal e outros fatores predizem melhor a glicemia do que o IG isolado.(PubMed)

Mesmo assim, em nível populacional, dietas com menor índice/ carga glicêmica tendem a melhorar o controle glicêmico em pré-diabetes e diabetes, conforme meta-análises e revisões sistemáticas.(PubMed)

É nesse contexto que a maltodextrina se torna relevante: ela é um “carboidrato complexo” com comportamento glicêmico típico de carboidrato muito rapidamente digerido.

O que é maltodextrina?

A maltodextrina é um polímero de glicose obtido pela hidrólise parcial de amidos comumente derivados de milho, arroz, batata, trigo ou mandioca.

Segundo uma revisão ampla publicada em Critical Reviews in Food Science and Nutrition, as maltodextrinas digestíveis são cadeias curtas de glicose (sacáridos dextrose-equivalente < 20), totalmente digeríveis no intestino delgado e usadas em grande escala pela indústria alimentícia em bebidas, produtos dietéticos, fórmulas infantis, alimentos esportivos, confeitaria e muitos outros produtos processados.(PMC)

Apesar de serem rotuladas como “carboidratos complexos”, essas maltodextrinas são de digestão muito rápida, resultando em absorção de glicose com velocidade semelhante à da glicose pura e respostas de glicose e insulina pós-prandiais comparáveis.

Índice glicêmico da maltodextrina: mais alto que o açúcar comum

Fontes técnicas e revisões indicam que a maltodextrina digestível possui índice glicêmico muito alto, frequentemente em torno de 105–110, portanto:(ScienceDirect)

  • superior ao da sacarose (açúcar de mesa), que gira em torno de 65–70;
  • semelhante ou até superior ao da glicose em algumas tabelas;
  • bem acima da maioria dos amidos menos processados.

A revisão de Hofman et al. ressalta que trocar amidos pouco processados por maltodextrinas aumenta a carga glicêmica da alimentação e, consequentemente, a glicemia pós-prandial, o que é visto como indesejável, especialmente em indivíduos com risco metabólico aumentado.

Ou seja, embora tecnicamente seja um “carboidrato complexo”, o comportamento glicêmico da maltodextrina digestível se assemelha ao de uma fonte de glicose de altíssima velocidade de absorção.

Por que a maltodextrina aparece em tantos produtos?

A indústria utiliza maltodextrina por diversas razões tecnológicas:

  • Espessante e estabilizante – em sopas instantâneas, molhos, temperos prontos, sobremesas em pó;
  • Veículo (carrier) para aromas, vitaminas e adoçantes;
  • Agente de volume (filler) em produtos “zero” ou “diet”;
  • Substituto de gordura em certos produtos light, por formar géis com textura cremosa;
  • Fonte de energia de rápida absorção em bebidas esportivas, géis de endurance, nutrição clínica e fórmulas especiais.

Essa versatilidade faz com que a maltodextrina apareça em listas de ingredientes de:

  • sopas e molhos instantâneos;
  • temperos e misturas para bebidas em pó;
  • barras proteicas e “barrinhas” com apelo fit;
  • sorvetes, confeitaria e recheios;
  • suplementos esportivos, pós-treino e repositores energéticos;
  • produtos de nutrição clínica (fórmulas enterais, shakes hipercalóricos).

Em alguns contextos, como esportes de endurance ou nutrição hospitalar, essa digestão rápida pode ser desejável. Porém, no dia a dia de quem já tem resistência à insulina, pré-diabetes, diabetes ou SOP, a presença frequente de um carboidrato de IG muito alto em produtos rotulados como “sem açúcar” ou “light” é um ponto crítico.

O caso dos adoçantes de mesa e produtos “sem açúcar”

Um ponto sensível é a presença de maltodextrina em produtos que se apresentam como “zero açúcar”, especialmente adoçantes de mesa em sachê e diversos alimentos “sugar-free”.

No caso de adoçantes à base de sucralose, como as versões em pó de Splenda®, análises de composição e revisões regulatórias indicam que:(ScienceDirect)

  • o produto é formado majoritariamente por dextrose e maltodextrina (≈94–95% da mistura);
  • a sucralose, extremamente doce, está presente em torno de 1–1,5%, apenas para fornecer a doçura;
  • a porção de carboidratos de rápida digestão vem justamente de dextrose + maltodextrina.

Ou seja, do ponto de vista metabólico, quem usa muitos sachês por dia não está apenas “pingando adoçante”: está adicionando pequenas quantidades repetidas de carboidratos de altíssimo IG, ainda que o rótulo declare “0 kcal” ou “0 g de açúcar”, graças às regras de arredondamento por porção.(Healthline)

Situação semelhante ocorre em:

  • gelatinas e pudins “diet/sugar-free” – em que maltodextrina atua como veículo e espessante;
  • balas, chicletes e chocolates “sem açúcar” – combinando poliálcoois com maltodextrina;
  • barras “proteicas”, “keto” ou “low carb” – em que maltodextrina aparece como aglutinante, fonte de volume ou parte da matriz de fibras e proteínas.(Medical News Today)

Em rótulos, maltodextrina entra no total de “carboidratos”, mas pode não aparecer em “açúcares”, o que gera a impressão de que o alimento é metabolicamente neutro, quando não é.

Por que os picos glicêmicos frequentes preocupam?

Revisões sobre maltodextrinas digestíveis e sobre carboidratos refinados em geral chamam atenção para alguns pontos:

  1. Resposta rápida de glicose e insulina. A digestão da maltodextrina é rápida, a absorção de glicose é eficiente e os picos de glicemia e insulinemia são semelhantes aos observados com glicose.
  2. Carga glicêmica da dieta. A substituição de amidos menos processados por derivados como maltodextrina aumenta a carga glicêmica das refeições, o que pode contribuir para maior variabilidade glicêmica ao longo do dia.
  3. Risco metabólico em consumo crônico. Embora não haja evidência de que a maltodextrina, isoladamente, cause diabetes, revisões relacionam o consumo habitual de alimentos ricos em carboidratos refinados e de rápida digestão com maior risco de ganho de peso, piora da sensibilidade à insulina e alterações de lipídios sanguíneos, especialmente em indivíduos vulneráveis.
  4. Microbiota e inflamação (evidência emergente). Estudos experimentais em modelos celulares e animais sugerem que algumas formas de maltodextrina podem favorecer aderência e virulência de certas bactérias intestinais (como E. coli) e estar associadas a respostas inflamatórias, embora essa evidência ainda seja limitada e não conclusiva em humanos.(Medical News Today)

Do ponto de vista das diretrizes, dietas com índice e carga glicêmica mais baixos, baseadas em alimentos minimamente processados, mostram benefício consistente no controle glicêmico, pressão arterial e alguns marcadores de risco cardiovascular em pessoas com pré-diabetes e diabetes.(BMJ)

Nesse cenário, um carboidrato isolado de IG extremamente alto, presente de forma recorrente em produtos ultraprocessados, torna-se um elemento relevante a ser considerado.

Onde a maltodextrina faz mais sentido?

A mesma literatura que alerta para o uso excessivo da maltodextrina também descreve contextos em que ela cumpre um papel específico e justificado, por exemplo:

  • Nutrição esportiva de endurance – em exercícios prolongados de alta demanda energética, soluções com glicose, frutose e maltodextrina são usadas para maximizar a oferta de carboidratos, mantendo a osmolaridade da bebida em níveis toleráveis.
  • Nutrição clínica e fórmulas enterais – em pacientes com necessidade de aporte calórico elevado ou restrições específicas, maltodextrina pode atuar como fonte de energia de fácil digestão, muitas vezes em combinação com proteínas e outros nutrientes.

Nesses casos, o uso ocorre sob supervisão ou em situações bem delimitadas. O problema central discutido nas revisões é o uso amplo e cotidiano de maltodextrina em produtos ultraprocessados de consumo livre, especialmente em populações com alta prevalência de síndrome metabólica.

Síntese: o “pior carboidrato” depende do contexto, mas a maltodextrina merece atenção

A partir das evidências disponíveis, alguns pontos podem ser resumidos:

  • Maltodextrina digestível é um carboidrato de altíssimo índice glicêmico, com resposta de glicose e insulina semelhante à da glicose pura.
  • Ela é amplamente utilizada em alimentos processados e, em muitos produtos “sem açúcar”, representa a maior parte do conteúdo de carboidratos, enquanto o rótulo destaca apenas o adoçante de alta potência.
  • Revisões sobre maltodextrina e sobre dietas de alto índice glicêmico apontam que o consumo frequente de carboidratos refinados de rápida digestão pode contribuir para pior controle glicêmico e maior risco cardiometabólico em grupos suscetíveis, ainda que a maltodextrina, isoladamente, não seja apontada como “causa” única desses desfechos.
  • Há também dados experimentais sugerindo potenciais efeitos sobre microbiota e inflamação em consumos elevados, mas essa área ainda carece de evidência robusta em humanos.

Em suma, do ponto de vista das evidências, a maltodextrina digestível pode ser descrita como um dos carboidratos mais “rápidos” disponíveis na alimentação, o que a torna funcional em contextos específicos (esporte, clínica), mas pouco desejável como ingrediente rotineiro em alimentos que se apresentam como saudáveis ou “sem açúcar”, especialmente para pessoas com pré-diabetes, diabetes, SOP ou resistência à insulina.

Fonte: https://www.bbdnutrition.com/2025/11/13/the-worst-carb-for-blood-sugar-youve-probably-never-heard-of/

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