O dilema do teste para câncer de próstata


A discussão sobre o exame de PSA (antígeno prostático específico) como estratégia de rastreamento do câncer de próstata tem décadas e segue sem consenso absoluto. De um lado, há evidências de redução de mortalidade por câncer de próstata em alguns cenários; de outro, permanecem os riscos de resultados falso-positivos, biópsias desnecessárias, sobrediagnóstico e tratamento excessivo com efeitos colaterais relevantes. Este artigo organiza o que grandes estudos e diretrizes de referência vêm mostrando, para que o leitor entenda por que o tema continua sendo um “dilema” e como hoje se caminha para abordagens mais personalizadas.

O que é medido e por que o PSA é controverso

O PSA é uma proteína produzida pela próstata e medida no sangue. Níveis elevados podem indicar câncer, mas também podem ocorrer por causas benignas (hiperplasia prostática, inflamação, manipulação urológica). Por isso, o PSA é sensível, porém pouco específico. A consequência prática é a possibilidade de chamar para biópsia homens que não têm câncer clinicamente relevante, desencadeando cascatas de exames e procedimentos. Diretrizes como as da força-tarefa norte-americana USPSTF descrevem explicitamente esse balanço de benefícios e danos, recomendando decisão compartilhada para 55–69 anos (recomendação C) e contra rastreamento rotineiro em ≥70 anos (recomendação D) (USPSTF 2018; sumário clínico).

O que dizem as diretrizes atuais

  • Estados Unidos (USPSTF): decisão individual entre 55–69 anos após discussão informada; não recomendar rastreamento em rotina para ≥70 anos (USPSTF 2018; documento técnico).
  • Associação Americana de Urologia (AUA/SUO): favorece detecção precoce baseada em PSA com decisão compartilhada e uso de ressonância magnética (RM) para orientar biópsia quando apropriado (AUA/SUO).
  • Associação Europeia de Urologia (EAU): recomenda modelo de rastreamento adaptado ao risco (iniciar em geral por volta dos 50 anos, considerar PSA basal e fatores de risco), incorporando RM antes da primeira biópsia para reduzir procedimentos desnecessários (EAU 2024; resumo de diretriz 2024; capítulo diagnóstico).

O que mostram os grandes ensaios de rastreamento

  • ERSPC (Europa): acompanhamentos prolongados demonstraram redução relativa de mortalidade por câncer de próstata com convite ao rastreamento por PSA. Em 16 anos de seguimento, observou-se benefício significativo, embora modesto em termos absolutos, com redução relativa ~20% e benefício absoluto maior ao longo do tempo (ERSPC, NEJM 2019; análise IBJU 2020).
  • PLCO (EUA): não demonstrou redução de mortalidade com rastreamento anual por PSA em comparação ao “cuidado usual”. Contudo, houve “contaminação” elevada (muitos participantes do grupo controle fizeram PSA por conta própria), o que dilui diferenças entre grupos e dificulta a interpretação (análise PLCO; JNCI).
  • Revisão sistemática Cochrane: a meta-análise de cinco ECRs não mostrou redução significativa em mortalidade específica combinada; o ERSPC, entretanto, encontrou benefício em subgrupo pré-especificado (55–69 anos), reforçando que efeitos podem depender de desenho, adesão e contaminação (Cochrane 2021).
  • Evidência de síntese (USPSTF): análise por modelagem e dados individuais sugere que, ajustando diferenças de adesão e contaminação, os resultados de ERSPC e PLCO podem ser compatíveis com redução relativa de 25–30% na mortalidade por câncer de próstata com rastreamento efetivo, à custa de sobrediagnóstico e possíveis danos (USPSTF – Evidence Summary).

Danos potenciais e a questão do sobrediagnóstico

Sobrediagnóstico significa detectar tumores que não causariam sintomas ou morte durante a vida do indivíduo. Isso pode levar a tratamentos desnecessários, com efeitos como disfunção erétil e incontinência. O conjunto de evidências reconhece que esses danos existem e precisam ser ponderados frente ao benefício em mortalidade (USPSTF; Cochrane).

Como a prática mudou: RM antes da biópsia e rastreamento adaptado ao risco

Uma mudança crucial dos últimos anos é usar a ressonância magnética multiparamétrica como etapa pré-biópsia. Ensaios como o PRECISION mostraram que a RM, seguida de biópsia direcionada quando indicada, detecta mais câncer clinicamente significativo e menos câncer indolente, além de evitar biópsias em homens com RM não sugestiva (PRECISION, NEJM 2018; NEJM 2021; UCL – PRECISION). Diretrizes AUA e EAU incorporam esse caminho para reduzir procedimentos desnecessários e sobrediagnóstico (AUA/SUO; EAU 2024).

Ao mesmo tempo, o seguimento “vigilância ativa” para tumores de baixo risco tornou-se componente essencial, limitando intervenções quando o risco de progressão é baixo, com monitorização clínica e por imagem (EAU 2024).

Quem mais pode se beneficiar da conversa sobre rastreamento

A decisão tende a ser mais ativa em homens entre 55 e 69 anos, sobretudo na presença de maior risco (história familiar, ancestralidade africana, entre outros). Nesses grupos, diretrizes recomendam discussão sobre benefícios e danos, intervalos de teste e passos diagnósticos subsequentes se o PSA vier alterado (USPSTF 2018; EAU 2024). Para ≥70 anos, a recomendação contra rastrear em rotina reflete a menor probabilidade de benefício e maior risco de danos (USPSTF).

Por que o dilema persiste

O dilema não é se o PSA “funciona” ou “não funciona”, e sim em quais condições ele agrega valor. Ensaios diferentes (com adesão distinta, contaminação no controle e protocolos diversos) chegam a conclusões aparentemente conflitantes. Quando se consideram as melhores práticas atuais — decisão compartilhada, uso de RM antes da biópsia, critérios para vigilância ativa e abordagem adaptada ao risco — o equilíbrio tende a melhorar. Ainda assim, o benefício absoluto em mortalidade é modesto e exige ponderação cuidadosa dos danos potenciais, algo reiterado por revisões sistemáticas e pela USPSTF (Cochrane 2021; USPSTF – Evidence Summary).

Pontos práticos para uma conversa bem informada

  • Perfil de risco: idade, história familiar, ancestralidade e valores pessoais devem orientar a decisão (USPSTF – Documento técnico).
  • Caminho diagnóstico: PSA alterado não significa diagnóstico; a RM precede a biópsia em muitas diretrizes para reduzir procedimentos desnecessários (PRECISION; EAU).
  • Manejo do câncer de baixo risco: vigilância ativa é opção consolidada, reduzindo danos do tratamento excessivo (EAU 2024).
  • Expectativas realistas: o potencial de reduzir mortes existe, mas o ganho absoluto é pequeno, e há riscos mensuráveis de sobrediagnóstico e efeitos adversos (Cochrane; ERSPC 2019).
  • Atualização contínua: avanços em imagem e modelos de risco sustentam a tendência a rastrear menos, porém melhor, priorizando quem tem maior probabilidade de se beneficiar (EAU 2024; AUA/SUO).

Conclusão

O “dilema do teste” permanece porque não existe uma resposta universal que sirva para todos os homens. As melhores evidências sugerem que, quando o rastreamento é aplicado de forma criteriosa — com decisão compartilhada, consideração de risco individual, uso de RM antes da biópsia e vigilância ativa para tumores de baixo risco — é possível reduzir mortes por câncer de próstata, limitando ao mesmo tempo danos desnecessários. O caminho mais sólido hoje não é um “sim” ou “não” automático ao PSA, mas uma conversa informada e personalizada, ancorada em diretrizes atualizadas e nos resultados de ensaios clínicos de qualidade (ERSPC 2019; PLCO – análise; Cochrane 2021; EAU 2024; AUA/SUO; USPSTF 2018; PRECISION).

Fonte: https://blog.maryannedemasi.com/p/the-prostate-cancer-test-dilemma

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