Biologia da fome humana (1950)


Em meados da década de 1940, o fisiologista norte-americano Ancel Keys, professor da Universidade de Minnesota, conduziu um dos estudos mais extensos e detalhados da história sobre os efeitos da fome no corpo humano. Publicado em dois volumes sob o título The Biology of Human Starvation (1950), o experimento tornou-se uma referência para compreender as consequências metabólicas, psicológicas e sociais da desnutrição severa — especialmente em tempos de guerra e crises alimentares.

Contexto histórico

Durante a Segunda Guerra Mundial, milhões de pessoas na Europa sofreram com a escassez de alimentos. Keys, que já estudava metabolismo energético e nutrição militar, propôs investigar como o corpo humano reagia à restrição alimentar prolongada e, principalmente, como poderia se recuperar da fome. O objetivo era fornecer subsídios científicos para programas de reabilitação nutricional no pós-guerra.

A pesquisa foi financiada pela Civilian Public Service, órgão que reunia voluntários americanos objetores de consciência — jovens que se recusavam a lutar, mas aceitavam participar de trabalhos civis e científicos.

Seleção dos participantes

Após uma triagem inicial com cerca de 400 voluntários, 36 homens saudáveis, fisicamente ativos e com bom equilíbrio emocional foram escolhidos. Todos estavam entre 22 e 33 anos, apresentavam IMC normal, histórico médico favorável e motivação altruísta. Esses homens se tornaram os protagonistas do que seria conhecido como o Minnesota Starvation Experiment.

Eles passaram a viver no Laboratório de Higiene Fisiológica da Universidade de Minnesota, onde cada aspecto de sua vida foi controlado: alimentação, sono, atividade física e comportamento psicológico.

Estrutura do experimento

O protocolo foi dividido em três fases principais, com duração total de cerca de um ano:

1. Fase de controle (12 semanas)

Os participantes receberam uma dieta equilibrada de cerca de 3.200 kcal por dia, composta por alimentos típicos da época — carnes, batatas, pão, manteiga e leite. Essa etapa serviu para estabelecer um padrão metabólico de referência, permitindo comparar alterações futuras.

2. Fase de semi-inanição (24 semanas)

Nesta fase, a ingestão calórica foi reduzida pela metade, para cerca de 1.560 kcal diárias. A dieta simulava o padrão alimentar de populações europeias em guerra, baseada em batatas, pão, repolho, nabos e pequenas porções de leite e carne. Os voluntários continuaram realizando atividades físicas diárias, caminhando cerca de 35 km por semana.

Os efeitos dessa restrição prolongada foram profundos:

  • Perda média de 25% do peso corporal, com reduções drásticas de massa muscular e gordura.
  • Bradicardia, hipotensão e letargia.
  • Temperatura corporal reduzida (alguns relataram sensação constante de frio).
  • Edemas em pernas e tornozelos devido à baixa ingestão proteica e retenção de líquidos.
  • Diminuição da libido, irritabilidade, ansiedade e isolamento social.
  • Alterações cognitivas: obsessão por comida, leitura de receitas, sonhos com banquetes e perda de foco mental.

Keys registrou que a fome não apenas debilitava o corpo, mas também desorganizava o comportamento humano.

3. Fase de reabilitação (12 a 20 semanas)

Na última etapa, os participantes foram divididos em grupos e receberam diferentes planos de realimentação. As dietas variaram entre 2.000 e 4.000 kcal, com distintos níveis de proteína e gordura. Keys buscava descobrir quais nutrientes eram essenciais para restaurar o organismo.

Os resultados mostraram que a simples adição de calorias não bastava. A recuperação exigia proteína e gordura adequadas, além de tempo prolongado. Mesmo após 12 semanas de reabilitação, muitos ainda apresentavam:

  • Fraqueza muscular persistente,
  • Metabolismo basal reduzido,
  • Alterações emocionais e apatia.

A plena recuperação física e mental levou mais de seis meses após o término oficial do estudo.

Principais conclusões

  1. A restrição calórica severa altera profundamente o metabolismo humano, reduzindo gasto energético, batimentos cardíacos, temperatura e força muscular.
  2. A privação prolongada causa sofrimento psicológico intenso, com depressão, irritabilidade, apatia e distorção da percepção alimentar.
  3. A recuperação da fome é lenta e depende da qualidade da dieta, especialmente da presença de proteína e gordura.
  4. A realimentação inadequada pode agravar os danos metabólicos, fenômeno hoje conhecido como síndrome da realimentação.
  5. O experimento demonstrou que a fome prolongada é um estado clínico complexo, exigindo abordagem médica e nutricional cuidadosa.

Impacto científico e legado

Os achados de Ancel Keys influenciaram décadas de pesquisa sobre metabolismo, dietas de restrição e transtornos alimentares. O modelo experimental serviu de base para entender os efeitos fisiológicos da anorexia nervosa, do jejum prolongado e de regimes extremos de emagrecimento.

Além disso, o estudo evidenciou a importância de reintroduzir alimentos de origem animal na recuperação nutricional, uma vez que os grupos com maior consumo de proteína e gordura apresentaram melhor recuperação física e psicológica. Keys observou que nutrientes essenciais, ausentes nas dietas vegetais restritas da fase de semi-inanição, eram indispensáveis para restaurar a massa magra e as funções endócrinas.

O experimento permanece como um marco ético e científico na história da nutrição. Apesar das duras condições impostas aos voluntários, seu sacrifício permitiu compreender, com precisão inédita, como a fome transforma o corpo e a mente humanos — e como a alimentação adequada pode restaurá-los.

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