O artigo publicado por Nosratabadi e colaboradores no Journal of Health, Population and Nutrition investigou os efeitos da exposição ocupacional a pesticidas sobre a função dos rins em agricultores da região de Rafsanjan, no Irã — uma das maiores produtoras de pistache do mundo. A pesquisa oferece evidências não apenas sobre os danos aos trabalhadores rurais, mas também sobre as implicações indiretas para a saúde do consumidor final.
Contexto geral
Os pesticidas são substâncias químicas usadas para controlar pragas agrícolas. Embora cumpram papel importante na produtividade das lavouras, esses produtos não afetam apenas insetos e ervas daninhas: também atingem organismos não alvo, incluindo seres humanos.
Seu uso intenso levou a uma contaminação ambiental disseminada, com resíduos detectados no solo, na água, no ar e até em alimentos prontos para o consumo.
Trabalhadores rurais, especialmente aqueles que aplicam pesticidas, estão expostos por inalação, contato com a pele e ingestão acidental. Esses compostos, como os organofosforados e carbamatos, estão entre os mais tóxicos e podem gerar estresse oxidativo, inflamações e lesões nos rins, fígado e sistema nervoso. Estudos prévios já haviam relacionado o contato prolongado com esses produtos à doença renal crônica (DRC) e à insuficiência renal aguda (IRA), condições em que os rins perdem gradualmente a capacidade de filtrar o sangue e eliminar toxinas.
Como o estudo foi realizado
Os autores conduziram um estudo de caso-controle com duração de 10 meses em 2023, envolvendo 150 adultos divididos em três grupos:
- 50 agricultores aplicadores de pesticidas (grupo de exposição direta);
- 50 moradores que viviam próximos aos pomares de pistache (exposição indireta);
- 50 indivíduos urbanos sem contato com pesticidas (grupo controle).
Foram coletados dados demográficos, histórico de doenças e hábitos de vida. Amostras de sangue foram analisadas para medir:
- Creatinina (Cr) e ureia (BUN) – marcadores clássicos da função renal;
- Sódio (Na) e potássio (K) – eletrólitos importantes para o equilíbrio hídrico e funcionamento celular;
- Taxa de filtração glomerular (GFR) – indicador direto da capacidade dos rins de filtrar o sangue.
Os pesquisadores calcularam ainda índices de exposição ocupacional, considerando o tempo de trabalho com pesticidas, frequência de pulverização e uso de equipamentos de proteção individual (EPI), como máscaras, luvas e roupas resistentes a produtos químicos.
Principais resultados
As análises mostraram que os agricultores e moradores próximos às plantações apresentaram pior função renal do que o grupo urbano sem exposição.
Os achados principais foram:
- Creatinina elevada e GFR reduzida em ambos os grupos expostos, indicando comprometimento da filtração renal;
- Aumento de ureia (BUN), sódio e potássio, embora sem significância estatística;
- Correlação positiva entre o tempo total de exposição e os níveis de ureia, sugerindo dano cumulativo nos rins ao longo dos anos;
- Correlação negativa entre anos de exposição e GFR, reforçando que a exposição prolongada deteriora gradualmente a função renal.
O uso de EPI mostrou efeito protetor parcial: agricultores que utilizavam corretamente o equipamento apresentaram níveis mais baixos de ureia, mas sem melhora em marcadores mais estáveis como creatinina e GFR. Isso indica que o EPI pode reduzir parte da absorção cutânea, mas não é suficiente para impedir o dano renal em longo prazo.
Discussão e interpretação
Os resultados confirmam que a exposição ocupacional e ambiental aos pesticidas afeta a função renal, tanto em quem aplica os produtos quanto em quem vive próximo às áreas agrícolas.
A presença de alterações discretas, porém consistentes, em moradores sem contato direto revela que a contaminação ultrapassa o limite das fazendas, alcançando o ar, o solo e a água utilizados pelas comunidades vizinhas.
Esses achados são compatíveis com outras pesquisas realizadas na Índia, Paquistão, Camarões e Gaza, que associaram o uso crônico de pesticidas a níveis elevados de creatinina e ureia, além de sinais precoces de insuficiência renal e metabólica.
Segundo os autores, isso sugere que os efeitos tóxicos são universais, independentemente da cultura agrícola.
Outro ponto relevante é que, mesmo com o uso de EPI, o risco não desaparece. Estudos complementares mostraram que certos equipamentos podem absorver parte dos químicos, permitindo sua passagem pelo material em poucos minutos, o que reforça a importância de treinamento e substituição periódica dos equipamentos.
Implicações para o consumidor final
Embora o foco do estudo tenha sido ocupacional, as conclusões têm impacto direto sobre quem consome alimentos cultivados com pesticidas.
As mesmas substâncias que alteram a função renal dos trabalhadores podem persistir em pequenas quantidades nas frutas, verduras, cereais e oleaginosas. Mesmo em níveis abaixo dos limites legais, a exposição contínua e cumulativa é motivo de preocupação.
Estudos revisados pela Environmental Health Perspectives (2022) e pela Organização Mundial da Saúde (OMS) indicam que resíduos crônicos de pesticidas podem estar ligados a:
- disfunções renais e hepáticas,
- distúrbios hormonais e metabólicos, e
- efeitos neurológicos de longo prazo.
No caso de culturas como o pistache, amplamente exportado e consumido, isso significa que o impacto da contaminação ambiental pode se estender ao consumidor global.
Além disso, o uso intensivo de pesticidas altera a biodiversidade do solo e reduz o teor de micronutrientes nos alimentos vegetais, resultando em produtos menos nutritivos.
Assim, o problema não se limita à toxicidade química: há também perda de qualidade nutricional, especialmente quando comparada a alimentos de origem animal, naturalmente mais densos em proteínas, vitaminas e minerais.
Implicações práticas e preventivas
Os autores recomendam maior vigilância médica sobre agricultores, educação sobre o uso correto de EPI, e políticas públicas para reduzir a dependência de pesticidas.
Para o consumidor final, as implicações são claras:
- Lavar e descascar frutas e hortaliças ajuda, mas não elimina completamente resíduos lipossolúveis;
- Priorizar alimentos de origem animal de sistemas extensivos, como carne e ovos de pasto, reduz a exposição a resíduos agrícolas;
- Valorizar produtores locais e cultivos orgânicos certificados é uma medida eficaz de proteção.
A mensagem central é que a saúde do consumidor depende da saúde do agricultor. A contaminação química é um elo entre o campo e a mesa — e sua redução exige uma mudança profunda no modelo agrícola baseado em defensivos químicos.
Conclusão
O estudo de Nosratabadi e colegas revela um panorama preocupante: a exposição prolongada a pesticidas está associada à piora da função renal, tanto em quem trabalha diretamente nas lavouras quanto em quem vive nos arredores.
Esses efeitos, cumulativos e silenciosos, demonstram que o impacto dos pesticidas transcende o ambiente rural e alcança toda a cadeia alimentar.
Os resultados reforçam a necessidade de vigilância sanitária rigorosa, transparência nas práticas agrícolas e educação populacional sobre os riscos do consumo contínuo de produtos contaminados.
Trata-se de um alerta que ultrapassa fronteiras e reforça um princípio básico de saúde pública: um alimento seguro começa com um ambiente saudável.
