No início do século XX, muito antes da disponibilidade clínica da insulina, o médico Frederick M. Allen publicou, em 1914, uma série de experiências que buscavam entender como o diabetes surgia e evoluía, e como poderia ser controlado por meio da alimentação e do jejum. O trabalho foi divulgado no Journal of the American Medical Association (JAMA) e permanece como referência histórica para compreender o manejo dietético do diabetes no período pré-insulina. Neste artigo, o foco recai sobre o papel dos alimentos de origem animal dentro dessa proposta clássica.
Como Allen estudou o diabetes
Allen utilizou modelos experimentais com cães e gatos, removendo frações do pâncreas para induzir graus distintos de deficiência pancreática. Em seguida, manipulou a dieta para observar quando a glicosúria (açúcar na urina) aparecia ou desaparecia. Com base nesses ensaios, descreveu relações entre a quantidade de tecido pancreático remanescente e a carga de carboidratos da dieta, articulando uma hipótese fisiológica da época para explicar por que o organismo, sob certas condições, deixava de “assimilar” a glicose adequadamente.
O que determinava o agravamento ou a melhora
A observação central foi que, quando o pâncreas estava muito reduzido, o diabetes se tornava grave e tendia a piorar com facilidade. Entretanto, quando havia maior quantidade de tecido funcional, a dieta passava a comandar o desfecho:
- Com alimentos de origem animal (carne e gordura natural), muitos animais mantinham a urina livre de açúcar ou conseguiam revertê-la após episódios de glicosúria.
- Com pão, leite ou açúcar, a glicosúria reaparecia, e a persistência desses itens podia levar, gradualmente, a um estado de diabetes mais severo, que às vezes não regredia mesmo após a retirada posterior dos carboidratos.
Por que os alimentos de origem animal ganharam destaque no protocolo
A lógica prática, derivada das observações experimentais, foi a de reduzir a demanda de glicose que o organismo precisava “assimilar”. Alimentos de origem animal (carne e gordura natural) praticamente não oferecem carga de amido ou açúcares e, por isso, não desencadeiam glicosúria nas mesmas condições em que pão, leite e açúcares a provocavam. Em termos de manejo, essa diferença permitia:
- Obter urina sem açúcar com maior previsibilidade;
- Manter estabilidade metabólica quando o pâncreas estava fragilizado;
- Evitar a progressão de quadros que, expostos repetidamente a carboidratos, tendiam a se agravar.
Essa estratégia, sempre acompanhada de monitorização objetiva (busca por açúcar e cetonas na urina, balanço nitrogenado), não visava ganho de peso imediato. O objetivo inicial era estabilidade metabólica; a reintrodução calórica vinha depois, e de forma gradual.
Passos práticos no manejo dietético proposto em 1914
Allen descreveu um método clínico sequencial, aplicável ao contexto terapêutico da época:
- Jejum inicial até cessar a glicosúria e reduzir a cetonúria, com hidratação e medidas de suporte usuais; utilizava-se, então, pequena quantidade de álcool como fonte energética transitória conforme práticas médicas daquele período.
- Reintrodução cautelosa de alimentos, em etapas: primeiro carboidratos de baixo teor (em pequenas quantidades e fracionados), depois proteína e, por fim, gordura, vigiando diariamente a reaparição de açúcar na urina.
- Dias intercalados de jejum quando surgiam sinais de perda de controle (retorno da glicosúria).
- Atenção ao ganho de peso precoce: aumentos rápidos de ingestão, mesmo com alimentos de origem animal, podiam reativar a glicosúria; por isso, a progressão calórica era deliberadamente lenta e guiada por marcadores objetivos.
O papel específico da carne, dos ovos e da gordura natural
Na proposta de Allen, carne e gordura natural foram peças centrais por não imporem ao pâncreas a mesma exigência de assimilação de glicose que ocorre com pão, leite e açúcar. Assim:
- Carne fornecia proteína e parte da energia, com impacto reduzido na glicosúria quando a tolerância aos carboidratos estava baixa.
- Gordura natural contribuía para a densidade energética sem estimular a excreção de glicose na urina.
- Ovos (embora menos enfatizados que a carne no texto de 1914) se enquadram, por composição, entre os alimentos de baixa carga glicídica e, por analogia lógica do próprio protocolo, seguiriam o mesmo princípio de tolerabilidade metabólica quando comparados a farináceos e açúcares.
Importa frisar que o êxito da estratégia dependia do ritmo de reintrodução e do monitoramento diário: mesmo alimentos de origem animal eram ajustados de acordo com o retorno ou não da glicosúria. O método não era “comer à vontade”, e sim usar a dieta como instrumento de controle metabólico.
Quando só retirar carboidrato não bastava
Nos casos mais leves ou mais precoces, apenas retirar carboidratos já reduzia ou eliminava a glicosúria. Em quadros mais avançados, Allen observou que o jejum de curto prazo se tornava necessário para “interromper” o ciclo de perda de controle; após alguns dias, iniciava-se a reintrodução metódica dos alimentos. Havia, ainda, situações em que, mesmo com jejum e restrição, o controle ficava incompleto — em geral quando a perda de função pancreática era extensa ou quando a exposição prolongada a carboidratos havia consolidado o agravamento.
Limitações e natureza histórica das conclusões
O trabalho é anterior à insulina e emprega conceitos, linguagem e recursos terapêuticos do início do século XX. As hipóteses fisiológicas (como a ideia de um fator produzido nas ilhotas, proposta à época para explicar a “assimilação” da glicose) devem ser lidas no contexto científico de 1914. Além disso, os resultados foram fortemente baseados em modelos animais, com reconhecidas diferenças entre espécies quanto à atrofia pancreática e à propensão à cetoacidose. Ainda assim, as regras práticas de Allen — reduzir carga de carboidratos, priorizar alimentos de origem animal para estabilidade, progredir lentamente e monitorar objetivamente — formaram um marco histórico na terapêutica dietética do diabetes.
Síntese para aplicação conceitual (histórica)
- Princípio-chave: quando a tolerância à glicose está comprometida, menos carboidrato = menor sobrecarga pancreática.
- Ferramenta de controle: alimentos de origem animal como base energética e proteica, por baixa carga glicídica e maior previsibilidade sobre a glicosúria.
- Estratégia: jejum curto quando preciso, reintrodução metódica e lenta, vigilância da urina e do estado ácido-básico.
- Meta inicial: estabilidade metabólica, antes de buscar ganho ponderal.
Considerações finais
A contribuição de Allen, ao colocar alimentos de origem animal no centro do controle metabólico, foi mostrar que a dieta podia ser um instrumento terapêutico concreto, graduado e mensurável por marcadores simples (glicosúria e cetonúria). Embora pertencente ao período pré-insulina, essa lógica iluminou a relação entre carga de carboidratos, capacidade funcional pancreática e estabilidade clínica, estabelecendo bases para a evolução futura do tratamento do diabetes.
