Segurança e eficácia da dieta cetogênica no manejo da esclerose múltipla


A esclerose múltipla (EM) é uma doença inflamatória e neurodegenerativa do sistema nervoso central, com impacto relevante em qualidade de vida, fadiga, humor, sono e funcionalidade diária. Mesmo com terapias modificadoras da doença (TMD), muitos pacientes mantêm sintomas persistentes e procuram estratégias complementares com base em evidências. Uma revisão sistemática recente avaliou a dieta cetogênica (DC) como intervenção adjuvante na EM, examinando segurança, adesão e efeitos sobre desfechos clínicos, bioquímicos e funcionais.

O que a revisão sistemática analisou

  • Escopo e método: seguindo PRISMA 2020, os autores realizaram buscas em cinco bases (PubMed, Scopus, Web of Science, EMBASE e Hinari) até abril de 2025 e incluíram seis estudos (2017–2024), em sua maioria com pacientes com EM remitente-recorrente (EMRR). A síntese foi qualitativa devido à heterogeneidade dos protocolos e desfechos.
  • Desfechos avaliados: composição da microbiota, marcadores inflamatórios (p.ex., ALOX5, COX1, COX2), composição corporal, adipocinas (leptina, adiponectina), fadiga, depressão, sono, qualidade de vida (QV), incapacidade neurológica (EDSS), marcha e destreza manual, além de segurança e adesão.
  • Resumo do achado central: a DC mostrou sinal consistente de benefício em múltiplos domínios (sintomas, marcadores inflamatórios, medidas funcionais) com boas taxas de adesão; os autores destacam a necessidade de ensaios maiores e mais longos para firmar segurança e eficácia de longo prazo.

Principais resultados por domínio

1) Inflamação e vias eicosanoides

Em um ensaio clínico piloto, a DC atenuou a expressão de genes ligados à biossíntese de eicosanoides pró-inflamatórios (ALOX5, COX1, COX2) em leucócitos periféricos, com correlação inversa com QV (MSQOL-54).
EBioMedicine, 2018.

2) Microbiota intestinal

Estudo comparativo com componente de intervenção mostrou baixa massa e diversidade da microbiota colônica em EM, com normalização após ~6 meses de DC (padrão bifásico: queda inicial seguida de recuperação acima do basal em 23–24 semanas).
Frontiers in Microbiology, 2017.

3) Composição corporal e adipocinas

Em intervenção prospectiva (fase II), a DC foi associada a redução de massa gorda, queda de leptina e elevação de adiponectina, além de melhora robusta em fadiga, depressão e QV; EDSS e testes funcionais (6MW, Nine-Hole Peg Test) também melhoraram ao longo de 6 meses, com adesão de 83%.
JNNP, 2022.

Em DC mediterrânea isocalórica, observaram-se aumento de massa magra, redução de massa gorda, maior saciedade e elevação de PON1 (marcador antioxidante), sem mudança significativa em grelina.
Nutrients, 2019.

4) Sono, humor e qualidade de vida

Estudo exploratório aberto registrou melhora de sono (PSQI), redução de sonolência diurna (ESS), e melhora de depressão, ansiedade e estresse (DASS-21), com impacto positivo em QV.
Sleep Medicine, 2023.

5) Persistência de efeitos e padrão alimentar pós-intervenção

No seguimento pós-ensaio (3 meses após 6 meses de DC), 21% mantiveram DC estrita e 37% adotaram versão liberalizada; muitos benefícios persistiram, embora atenuados. Registrou-se migração alimentar para maior proteína e gorduras poli-insaturadas e menos carboidratos/açúcares adicionados.
Clinical Nutrition, 2023/2024.

Segurança, adesão e tolerabilidade

  • Adesão: estudos reportaram taxas elevadas durante 6 meses (p.ex., 83%). Fatores associados a melhor manutenção incluíram perda de peso, maior energia/ foco e alívio de fadiga.
  • Eventos adversos/monitorização: a revisão aponta boa tolerabilidade geral, mas ressalta potenciais efeitos como dislipidemia, desconforto gastrointestinal e nefrolitíase, exigindo acompanhamento clínico, especialmente em uso prolongado.
  • Interação com TMD: observou-se, em um seguimento, que parte dos participantes relatou redução/ suspensão de medicamentos durante a DC; esse achado é observacional e requer confirmação controlada antes de orientar práticas clínicas.

Como interpretar os achados

A literatura sintetizada sugere que a DC pode modular vias inflamatórias, melhorar o estado metabólico (adipocinas, composição corporal) e impactar sintomas centrais da EM (fadiga, humor, sono), com ganhos funcionais mensuráveis (EDSS, marcha, destreza). Mecanisticamente, a cetose fornece substratos energéticos alternativos (β-hidroxibutirato, acetoacetato), com potenciais efeitos sobre estresse oxidativo, mitocôndrias, inflamação (p.ex., NLRP3) e plasticidade sináptica; essas vias são discutidas tanto na revisão quanto em referências mecanísticas citadas pelos autores.

Ponto-chave: a DC se apresenta como estratégia adjuvante promissora, especialmente em sintomas pouco responsivos às TMD (p.ex., fadiga), mas não substitui o tratamento de base e requer validação em ensaios maiores e mais longos.

Limitações reconhecidas

  • Amostras pequenas (≈21–65 participantes) e duração curta (predomínio de 6 meses).
  • Heterogeneidade de protocolos (clássica 4:1, Atkins modificada, mediterrânea cetogênica), dificultando comparações e metanálise.
  • Foco na EMRR, com escassez de dados em formas progressivas.
  • Ausência de grupos-controle em parte dos estudos e variação de desfechos.
  • Essas limitações impedem conclusões definitivas sobre longa duração e generalização dos efeitos.

Implicações práticas

  • Candidatos potenciais: pessoas com EM, sobretudo EMRR, que desejem estratégia adjuvante, orientada por equipe multiprofissional, e com monitorização periódica (clínica, laboratorial e nutricional).
  • Acompanhamento: atenção a perfil lipídico, função renal, hidratração, ingestão de micronutrientes e tolerância gastrointestinal; ajustar individualmente conforme resposta e metas clínicas.
  • Integração com TMD e reabilitação: a DC deve ser integrada às TMD, fisioterapia e medidas comportamentais, priorizando segurança e adesão de médio prazo.
  • (Estas orientações refletem a leitura dos estudos e não configuram substituição de conduta médica individualizada.)

Conclusão

A síntese atual indica que a dieta cetogênica pode oferecer benefícios multissistêmicos como adjuvante no manejo da EM—incluindo redução de fadiga e depressão, melhora de sono e QV, otimização de marcadores inflamatórios e ganhos funcionais objetivos—com boa adesão em 6 meses e persistência parcial dos efeitos após a intervenção. Entretanto, a base de evidências ainda é limitada, exigindo ensaios clínicos randomizados maiores, protocolos dietéticos padronizados, acompanhamento de longo prazo e avaliação em fenótipos progressivos para confirmar segurança e eficácia duradouras. Até lá, a DC deve ser considerada como opção complementar, individualizada e monitorada, integrada ao plano terapêutico convencional.

Fonte: https://doi.org/10.7759/cureus.89965

Postagem Anterior Próxima Postagem
Rating: 5 Postado por: