Recorrência pós-operatória de câncer pancreático controlada por 9 meses apenas por restrição severa de carboidratos: dieta cetogênica


O adenocarcinoma ductal de pâncreas (PDAC) mantém prognóstico reservado mesmo após cirurgia, com recidiva frequente e sobrevida média limitada quando a doença retorna. No cenário de recidiva pós-operatória, a quimioterapia sistêmica costuma ser a primeira escolha, porém a sobrevida média após a recaída é tipicamente inferior a 1 ano. Nesse contexto, um relato recente publicado no Clinical Journal of Gastroenterology descreveu a estabilização de metástases pulmonares por 9 meses utilizando apenas uma abordagem dietética cetogênica rigorosa, sem efeitos citotóxicos clássicos de quimioterapia.

O fundamento metabólico: glicose, efeito de Warburg e imagem com FDG-PET

O artigo retoma um princípio central da biologia tumoral: muitas células cancerosas reduzem a produção de energia por fosforilação oxidativa mitocondrial e aumentam a glicólise anaeróbica no citoplasma (o “efeito de Warburg”). Essa preferência por glicose sustenta, inclusive, o uso do FDG-PET/CT para localizar tumores pelo alto consumo de glicose. A dieta cetogênica, ao restringir carboidratos, reduz a disponibilidade de glicose circulante e induz cetose, atuando sobre esse ponto vulnerável metabólico.

Quem foi a paciente e qual foi o percurso terapêutico inicial

Tratou-se de uma mulher de 60 anos com PDAC “borderline resecável”, submetida a pancreatoduodenectomia após três ciclos de gemcitabina+nab-paclitaxel. O exame patológico confirmou PDAC com 3,1 cm e linfonodos positivos (5/28), estádio III (pT3 pN1b pM0, 8ª UICC). Concluiu 6 meses de adjuvância com S-1. Vinte e dois meses após a cirurgia, surgiram múltiplas metástases pulmonares; foi reiniciada gemcitabina+nab-paclitaxel por 1 ano, obtendo resposta parcial. Em seguida, realizou radioterapia para lesões remanescentes e mais 6 meses de S-1. Dez meses após a radioterapia, houve progressão das metástases pulmonares. Diante de neuropatia periférica, fadiga e alopecia vivenciadas com quimioterapia, a paciente optou por dieta cetogênica estrita em vez de nova quimioterapia.

Como foi estruturada a dieta cetogênica do caso

A prescrição aproximada foi de ~1400 kcal/dia, com 40–50 g/dia de carboidratos (≈15 g/lanche principal), 30–50 g/dia de proteína, 85–105 g/dia de gordura e uso de óleo TCM (MCT), iniciando em 10 g/refeição e progredindo até 20 g/refeição. A adesão foi monitorada por educação nutricional, envio diário de fotos das refeições para a nutricionista por e-mail durante 3 meses, e verificação matinal de cetonúria por tiras reagentes.

Evolução clínica durante a intervenção dietética

Logo no início, os parâmetros corporais eram: 43,3 kg de peso, 30,4% de gordura corporal e 28,3 kg de massa muscular. Em 4 meses, houve redução de 4,5 kg do peso total, com apenas 0,1 kg de queda na massa muscular e –3,6% de gordura corporal. Após 9 meses de dieta, o peso foi a 37,2 kg (–6,1 kg), a gordura corporal a 18,0% (–12,4%), enquanto a massa muscular se manteve/levemente aumentou (28,7 kg; +0,4 kg). Clinicamente, a paciente relatou ausência de fome e bem-estar, sem alopecia ou neuropatia periférica nesse período.

Do ponto de vista oncológico, o CA19-9 manteve-se praticamente estável por 9 meses (≈738–783 U/mL), e a tomografia evidenciou doença estável da lesão pulmonar-alvo (≈23 mm → 24 mm). Até 10 meses após o início da dieta, as imagens permaneceram compatíveis com estabilidade. Aos 12 meses, houve progressão com elevação do CA19-9 (2142 U/mL), quando a equipe reintroduziu gemcitabina mantendo a dieta; mais tarde, escalonou para gemcitabina+nab-paclitaxel por 2 meses. Os sintomas respiratórios pioraram e foi instituído cuidado de suporte. O óbito ocorreu 24 meses após o início da dieta cetogênica.

Marcadores metabólicos do tumor

O tumor apresentava alta expressão de GLUT1 por imuno-histoquímica, coerente com elevada captação de glicose observada em FDG-PET/CT (SUVmáx 5,7 no diagnóstico; 11,2 antes da dieta). Essa característica biológica reforça a plausibilidade do alvo metabólico explorado pela restrição de carboidratos.

Segurança, qualidade de vida e composição corporal

Ao contrário dos eventos adversos típicos de quimioterápicos (náusea, vômitos, alopecia, mielossupressão), a intervenção dietética neste caso foi bem tolerada, com redução de gordura corporal e preservação/leve aumento de massa muscular ao longo de 9 meses — fatores relevantes para pacientes oncológicos que frequentemente cursam com caquexia. A monitorização de micronutrientes foi destacada como necessária, dado o risco potencial de deficiências (tiamina, zinco, selênio, magnésio, cálcio, ferro, vitamina C) quando grupos alimentares são restringidos; a suplementação direcionada deve ser considerada quando déficits forem detectados.

O que este caso mostra — e o que ele não prova

O relato documenta estabilização de metástases pulmonares por 9 meses com dieta cetogênica como única intervenção oncológica nesse período, em uma paciente previamente tratada com múltiplas linhas. Contudo, por ser estudo de caso, ele não estabelece causalidade nem substitui terapias padrão; tampouco permite generalizações para todos os pacientes com PDAC. O próprio artigo ressalta que a dieta pode ser mais tolerável do que quimioterapia, potencialmente suprimindo a progressão tumoral quando aplicada estritamente, mas reforça a necessidade de avaliação clínica individualizada, acompanhamento multiprofissional e monitoramento laboratorial.

Evidências relacionadas citadas pelos autores

Os autores mencionam literatura pré-clínica em modelos murinos sugerindo que a dieta cetogênica pode potencializar respostas a rádio- e quimioterapia, além de dados clínicos observacionais em estágio IV com adesão à cetose e sobrevida mediana superior ao que se observa tipicamente, embora com alto uso concomitante de quimioterapia — cenário que não permite isolar o efeito da dieta. Esses apontamentos ajudam a contextualizar o caso, mas não substituem ensaios clínicos controlados.

Implicações práticas e cautelas

Para equipes que considerem intervenções metabólicas como adjuvantes, este caso reforça a importância de: (1) selecionar pacientes e discutir objetivos realistas; (2) assegurar adesão por educação nutricional estruturada e checagens de cetose; (3) monitorar composição corporal, marcadores tumorais e micronutrientes; e (4) integrar a estratégia dietética ao plano oncológico, evitando atrasos indevidos em terapias de eficácia comprovada quando indicadas. Em síntese, o caso ilustra viabilidade, tolerabilidade e coerência biológica da dieta cetogênica como componente de manejo oncológico, ao passo que sublinha as limitações inerentes de um relato único.

Fonte: https://doi.org/10.1007/s12328-025-02221-z

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