Este artigo, publicado na Science Advances, investiga um ponto-chave da arqueologia sul-americana: qual foi o peso real da megafauna extinta (mamíferos >44 kg) na alimentação dos primeiros grupos humanos do Cone Sul? A hipótese predominante por décadas sugeria que esses grandes animais teriam sido apenas um recurso marginal, enquanto camelídeos atuais (como o guanaco) e presas menores seriam o foco da dieta. Os autores reavaliam essa visão utilizando um recorte cronológico rigoroso — somente conjuntos faunísticos anteriores à extinção, até ~11.600 anos calibrados antes do presente — e medidas quantitativas padronizadas (NISP, número de espécimes identificados), a fim de evitar misturas entre camadas pré e pós-extinção que distorcem interpretações.
O recorte temporal que muda a interpretação
A chave metodológica do trabalho está em isolar o período de convivência substancial entre humanos e megafauna até ~11.600 anos cal AP, quando as populações desses grandes mamíferos já haviam declinado drasticamente a partir de ~12.500 anos AP e desaparecido quase por completo logo depois. Ao limitar a análise a esse intervalo, evita-se que conjuntos mais jovens — nos quais a megafauna já não estava disponível — “diluam” o papel que ela teve na subsistência anterior.
Amostra e abordagem analítica
Dos 41 conjuntos faunísticos inicialmente identificados para o Cone Sul, 21 foram excluídos por apresentarem mistura com depósitos mais jovens; assim, 20 conjuntos pré-extinção compuseram a análise principal. O estudo contou presas por classes de tamanho (megafauna >44 kg; fauna média 44–4 kg; fauna pequena <4 kg) e avaliou, além da presença física, associações comportamentais inequívocas com humanos (marcas de corte, percussão e fraturas antrópicas). O NISP foi adotado por sua simplicidade e por minimizar efeitos de agregação ao comparar abundâncias relativas entre táxons.
Resultado 1 — Megafauna como recurso central da dieta
Em 18 dos 20 conjuntos pré-extinção, há restos de megafauna extinta; em todos os 20, há megafauna (extinta e/ou atual). Evidências de processamento humano de megafauna extinta aparecem em 13 dos 18 conjuntos em que ela está presente. Esses padrões, aliados à enorme contribuição alimentar de cada carcaça de grande porte, indicam que a megafauna foi indiscutivelmente um recurso central na subsistência do Pleistoceno tardio no Cone Sul.
Resultado 2 — Dominância quantitativa da megafauna extinta
Ao comparar megafauna extinta com megafauna atual (especialmente guanaco e cervídeos) via NISP, a megafauna extinta domina em 15 de 20 conjuntos, superando 80% dos espécimes em 13 sítios. Exemplos incluem Monte Verde II, Tagua Tagua 2–3, Santa Julia, Pay Paso 1, Campo Laborde, Tres Arroyos, Cueva Lago Sofía 1, Cueva del Medio, Paso Otero 5, El Trébol, Tagua Tagua 1 e Cueva Fell. A dominância por espécies inclui Mylodon darwinii na Patagônia, Megatherium americanum nos Pampas e Notiomastodon platensis no Chile central.
Resultado 3 — Quando a dieta “diversifica”
A ampliação da dieta para incluir presas menores e de menor retorno energético parece ocorrer após a forte retração das populações de megafauna (~12.500 AP) e, principalmente, após ~11.600 AP, quando esses grandes mamíferos já haviam praticamente desaparecido. Antes disso, o predomínio da megafauna nos conjuntos arqueofaunísticos contrasta com a ideia de um forrageamento “generalista” onde presas pequenas teriam peso equivalente ou maior.
Resultado 4 — Modelo de escolha de presas e “ranking” energético
Para entender por que determinadas presas foram preferidas, os autores estimam um ranking de retorno pós-encontro (quilocalorias por hora), integrando massa corporal, tempo de perseguição e processamento. Os maiores retornos recaem em táxons extintos como Megatherium americanum, Mylodon darwinii, gliptodontes (p.ex., Doedicurus, Glyptodon) e cavalos pleistocênicos (Equus neogeus, Hippidion saldiasi). Em geral, espécies extantes como guanaco, tarucas e vicunha ocupam posições inferiores. Essa hierarquia de retorno espelha a frequência observada nos conjuntos arqueofaunísticos das regiões com maior diversidade e abundância de megafauna (Patagônia sul e noroeste, Pampas e Chile central).
Em síntese, quando a megafauna estava disponível, era a melhor escolha energética e aparece de fato como o principal componente dos conjuntos; quando deixou de estar disponível, a dieta necessariamente se expandiu para incluir presas de menor retorno.
Implicações para o debate sobre as extinções
Um dos argumentos mais citados contra a centralidade humana nas extinções quaternárias na América do Sul era justamente a suposta importância marginal da megafauna na economia dos primeiros grupos humanos. Ao demonstrar que, antes de 11.600 AP, a megafauna extinta ocupava o topo do ranking de retorno e dominava os conjuntos arqueofaunísticos, o estudo enfraquece esse argumento e recoloca os humanos no centro do debate sobre as extinções do Pleistoceno tardio no Cone Sul.
Notas metodológicas adicionais
Os autores excluíram sítios com evidência ambígua de associação humano–megafauna e conjuntos potencialmente “rejuvenescidos” por mistura com camadas mais novas. A classificação de megafauna (>44 kg) abrangeu uma ampla gama de táxons extintos e alguns extantes, e o NISP foi o índice preferido para quantificação relativa. Para o ranking energético, foram combinadas bases de massa corporal e cal/kg com diferentes funções de tempo de perseguição e processamento, reconhecendo as incertezas inerentes à ausência de análogos etnográficos diretos para várias presas pleistocênicas.
Conclusão — O que este estudo acrescenta
Ao separar cuidadosamente os períodos pré e pós-extinção e aplicar métricas quantitativas comparáveis, o trabalho mostra que a megafauna extinta foi o principal item de subsistência dos primeiros forrageadores no sul da América do Sul, sobretudo nas regiões de alta abundância e diversidade (Pampas, Patagônia e Chile central). Apenas depois do colapso das populações desses grandes mamíferos é que a dieta humana se ampliou para recursos de menor retorno. Essa evidência corrige leituras anteriores baseadas em janelas cronológicas amplas e sustenta que a dimensão humana precisa ser considerada central no entendimento das extinções quaternárias na região.
Fonte: https://doi.org/10.1126/sciadv.adx2615
