Entre 1784 e 1812, David Thompson percorreu extensas regiões do Canadá e do noroeste dos Estados Unidos, registrando rotas fluviais, mapas detalhados e contatos com diversos povos indígenas. Sua narrativa, organizada e publicada em 1916 pela Champlain Society, não apenas descreve a geografia e a rivalidade das companhias de peles, mas também revela como os alimentos de origem animal foram fundamentais para a sobrevivência, o comércio e a cultura em um ambiente hostil e de longos invernos.
Ao ler suas memórias, torna-se evidente que carne, gordura, peixe e caça não eram apenas recursos eventuais: eram o eixo central da subsistência de exploradores europeus e populações nativas que viviam nas regiões subárticas, nas planícies e nos contrafortes das Montanhas Rochosas.
A base da dieta no interior da América do Norte
Na época em que Thompson iniciou suas jornadas, as rotas comerciais dependiam quase inteiramente da caça, da pesca e da pecuária improvisada em postos de comércio. Grãos e vegetais eram raros e difíceis de transportar em viagens de canoa ou trenó. Assim, a dieta era composta quase exclusivamente por alimentos de origem animal:
- Carne de caça: alces, búfalos, cervos e carneiros-das-rochas forneciam proteína e gordura em abundância.
- Peixes: esturjão, truta e salmão eram capturados em grande escala em rios como o Columbia, preservados por defumação ou secagem ao sol.
- Aves aquáticas: patos e gansos, muito presentes nas rotas migratórias, completavam o abastecimento.
- Gordura animal: indispensável no preparo e conservação dos alimentos, transformada em sebo e usada no tradicional pemmican, mistura de carne seca e gordura que sustentava viajantes por semanas.
O pemmican como alimento estratégico
Thompson descreve repetidamente a importância do pemmican, preparado sobretudo pelos povos Cree e Métis. Ele era feito de carne de búfalo seca, pilada até virar pó e misturada com gordura derretida, às vezes enriquecida com pequenos pedaços de carne ou tutano. O pemmican tornou-se a base logística de expedições e do comércio de peles:
- Alta densidade energética: pequeno volume com grande aporte calórico.
- Durabilidade: podia ser armazenado por meses sem estragar.
- Versatilidade: comido cru, aquecido ou transformado em ensopado.
Graças a ele, Thompson e outros exploradores puderam atravessar vastas distâncias sem depender de colheitas locais.
Carne fresca e a caça nas viagens
Apesar da praticidade do pemmican, Thompson relata a necessidade constante de carne fresca. A caça era realizada em grupo, envolvendo tanto europeus quanto indígenas:
- Nas pradarias, o búfalo era caçado em manadas, garantindo alimento para postos inteiros.
- Nas florestas boreais, o alce fornecia carne volumosa e peles resistentes.
- Nos rios e lagos, redes e armadilhas rendiam grandes quantidades de peixe, principalmente no degelo da primavera.
Esses alimentos não eram apenas nutrição: representavam prestígio e poder de negociação. Tribos e comerciantes estabeleciam relações de troca a partir do fornecimento de carne e gordura, reforçando alianças e rotas comerciais.
Gordura como elemento vital
Um aspecto recorrente na narrativa é a escassez de gordura durante invernos rigorosos. Caçar apenas carne magra podia levar a exaustão e até doença — fenômeno conhecido como “fome de coelho”, quando a ingestão exclusiva de carne magra não supre a necessidade de energia. Por isso, a gordura dos animais era valorizada como tesouro:
- Tutano dos ossos longos era reservado como alimento especial.
- Sebo e gordura derretida eram armazenados em bolsas de couro.
- Óleo de peixe era usado em épocas de menor caça terrestre.
A consciência da necessidade de gordura mostra que, mesmo sem conceitos bioquímicos modernos, exploradores e povos locais compreendiam a função essencial do equilíbrio entre proteína e lipídios para resistir ao frio extremo.
Relação com os povos indígenas
A narrativa de Thompson destaca como os indígenas dominavam técnicas de caça e preservação de carne que eram vitais para a sobrevivência dos recém-chegados europeus. Ele descreve:
- Métodos de secagem ao sol e defumação, que prolongavam a vida útil da carne.
- Distribuição comunitária da caça, que fortalecia alianças.
- Tabus alimentares que regulavam o consumo de certas partes do animal.
Esses saberes foram absorvidos pelos exploradores, integrados à rotina das expedições e decisivos para o êxito do mapeamento do interior do continente.
Conclusão
A narrativa de David Thompson não é apenas um relato geográfico ou de rivalidades comerciais. É também um testemunho de como a dependência dos alimentos de origem animal — carne, peixe, gordura e derivados — foi a base da sobrevivência em um ambiente de longos invernos e recursos limitados. O sucesso das expedições, a resistência física dos viajantes e até as relações políticas e comerciais foram moldados por esses alimentos.
Assim, compreender a obra de Thompson é perceber que, muito antes da industrialização da alimentação, os alimentos animais eram insubstituíveis para a vida humana em regiões inóspitas, sustentando tanto exploradores quanto as populações que ali viviam há séculos.
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