Nem tudo que reluz é ouro: mitos e realidades científicas sobre a microbiota intestinal


Nos últimos anos, a microbiota intestinal passou de curiosidade acadêmica a protagonista de manchetes e suplementos alimentares. Fala-se em “equilíbrio”, “diversidade”, “probióticos” e “transplante fecal” como se fossem chaves universais para a saúde. No entanto, quando a ciência de boa qualidade é analisada com cuidado, a narrativa simplificada se desfaz. Em uma perspectiva publicada na revista Nutrients em 30 de setembro de 2025, o pesquisador Priyankar Dey revisa os equívocos mais comuns e apresenta o estado atual das evidências sobre o tema, desmontando mitos populares e reforçando a necessidade de abordagens individualizadas e baseadas em dados confiáveis.

A partir desse artigo e de referências primárias citadas pelo autor, este texto organiza o que se sabe — e o que não se pode afirmar — sobre a microbiota intestinal. A intenção é mostrar por que simplificações (“mais diversidade é sempre melhor”, “bactérias boas vs. más”, “probióticos são sempre seguros”) não se sustentam quando confrontadas com estudos controlados e revisões sistemáticas.

Mito 1 — “O corpo humano abriga 100 trilhões de bactérias” (e a razão 10:1 em relação às células humanas)

Durante décadas circulou a ideia de que as bactérias superariam as células humanas numa proporção de 10:1. Estimativas modernas, com métodos mais precisos, indicam números muito próximos entre bactérias e células humanas — cerca de 3,8 × 10¹³ bactérias para 3,0 × 10¹³ células, no “humano de referência” de 70 kg (PLoS Biology, 2016). A mensagem é simples: a magnitude continua impressionante, mas as contas antigas eram grosseiras. O artigo em Nutrients reforça essa atualização metodológica e destaca como estimativas iniciais viraram “fato” por repetição, mesmo após correções robustas.

Mito 2 — “Maior diversidade microbiana significa, universalmente, mais saúde”

Diversidade (quantidade e distribuição de espécies) pode associar-se a bons desfechos, mas não é um marcador universal de saúde. Em vez de “quanto mais, melhor”, o que importa é contexto e função: quais vias metabólicas essas comunidades executam e como interagem com o hospedeiro. Estudos recentes enfatizam que diferentes perfis “saudáveis” podem existir entre indivíduos, e diversidade isolada não captura a funcionalidade do ecossistema (ISME J., 2024; Gut, 2024). A perspectiva em Nutrients recomenda abandonar soluções de “tamanho único” e buscar avaliações funcionais e personalizadas.

Mito 3 — “Há uma definição universal de eubiose e disbiose”

“Eubiose” (equilíbrio) e “disbiose” (desequilíbrio) são conceitos úteis, mas não há um padrão composicional universal para todos. A composição microbiana varia amplamente entre pessoas, ao longo da vida e de ambientes. Além disso, “disbiose” pode assumir formas distintas (deficiente, fermentativa, putrefativa, etc.), e os efeitos de um mesmo microrganismo podem ser benéficos, neutros ou prejudiciais, dependendo do contexto (Microb. Biotechnol., 2020; Microorganisms, 2019). O artigo em Nutrients conclui: função e interação com o hospedeiro são mais informativas do que listas fixas de espécies “boas” ou “más”.

Mito 4 — “Bactérias intestinais são simplesmente ‘boas’ ou ‘más’”

Classificações binárias não descrevem um ecossistema complexo. Um exemplo recorrente é Akkermansia muciniphila: frequentemente associada a benefícios metabólicos, pode, em determinados contextos, relacionar-se a efeitos indesejáveis, inclusive em modelos de câncer colorretal (Front. Immunol., 2024; J. Cancer, 2022). A mensagem central do artigo em Nutrients é que o comportamento das espécies depende do ambiente, do conjunto de microrganismos vizinhos, da dieta e do estado clínico do indivíduo.

Mito 5 — “A razão Firmicutes/Bacteroidetes (F/B) prevê metabolicamente quem vai adoecer”

A razão F/B já foi tratada como “termômetro” universal de obesidade e síndrome metabólica. Meta-análises e revisões mostram que se trata de um marcador inconsistente e arbitrário, incapaz de capturar a verdadeira função do ecossistema intestinal e sujeito a grande variabilidade entre pessoas e faixas etárias (Gut Microbes, 2017; Nutrients, 2020). A perspectiva em Nutrients recomenda superar métricas simplistas em favor de análises funcionais e individualizadas.

Mito 6 — “Probióticos são sempre seguros e benéficos para todos”

Probióticos (definidos de forma padronizada pela ISAPP) podem ser úteis em situações específicas, mas não são isentos de riscos, sobretudo em indivíduos vulneráveis. Há relatos de eventos adversos como bacteremia ou fungemia, interações com testes diagnósticos (por exemplo, SIBO) e até piora de sintomas em subgrupos, enquanto, em outros cenários, determinadas cepas atuam como adjuvantes terapêuticos (Nat. Rev. Gastroenterol. Hepatol., 2017; Clin. Transl. Gastroenterol., 2018; Microorganisms, 2025). O artigo em Nutrients reforça: eficácia e segurança são cepa-específicas, dependem de dose e contexto clínico, e exigem avaliação profissional criteriosa.

Mito 7 — “Drogas e nutrientes têm os mesmos efeitos em todo mundo”

A microbiota participa do metabolismo de fármacos e nutrientes, modulando biodisponibilidade, bioatividade e toxicidade. Isso ajuda a explicar por que indivíduos respondem de modo tão diferente a medicamentos e dietas semelhantes — campo conhecido como farmacomicrobiômica (Gut, 2020). A perspectiva em Nutrients aponta que integrar dados da microbiota em modelos de nutrição de precisão e de prescrição pode aperfeiçoar resultados terapêuticos.

Mito 8 — “Síndrome do intestino permeável é um diagnóstico clínico claro e único”

A permeabilidade intestinal aumentada (disfunção de barreira) é fenômeno reconhecido e associado a várias condições (IBD, IBS, obesidade, DM1, doença celíaca). Porém, a chamada “síndrome do intestino permeável” não é, por si só, uma entidade diagnóstica padronizada com critérios universais (Trends Endocrinol. Metab., 2022). O artigo da Nutrients destaca que intervenções dietéticas (por exemplo, padrões mediterrâneo ou cetogênico, conforme estudos citados), além de prebióticos, probióticos, simbióticos e pós-bióticos, podem modular a barreira em contextos específicos, mas a abordagem deve ser guiada por evidência e pelo quadro clínico.

Mito 9 — “Transplante de microbiota fecal (FMT) é cura-tudo”

O FMT é altamente eficaz para infecção recorrente por Clostridioides difficile (CDI), com taxas de cura elevadas em registros do mundo real, e é recomendado nessas situações (Gastroenterology, 2021). Fora desse contexto, o uso ainda é investigacional; há riscos (eventos gastrointestinais, transmissão de patógenos, necessidade de rastreio rigoroso de doadores) e carência de dados de longo prazo para muitas indicações (Clin. Endosc., 2021; Infect. Prev. Pract., 2020). A perspectiva em Nutrients alerta também para práticas “DIY”, sem controle sanitário, que não têm respaldo científico.

Mito 10 — “A microbiota é estática e difícil de mudar”

É o oposto: a microbiota é dinâmica e responde rapidamente a alterações ambientais, sobretudo dietéticas. Um estudo clássico mostrou que mudanças abruptas para dietas exclusivamente de origem animal ou de origem vegetal modificam a composição e a expressão gênica microbianas em 24 horas, com perfis funcionais distintos (fermentação de carboidratos vs. de proteínas) (Nature, 2014). Na perspectiva em Nutrients, essa plasticidade é vista como oportunidade para intervenções nutricionais e clínicas mais rápidas e direcionadas.

O que essa evidência muda na prática

O conjunto de dados reunidos por Dey da Nutrients não diminui a importância da microbiota; pelo contrário, coloca-a no lugar certo: um ecossistema adaptativo, individual e altamente responsivo, que exige ferramentas analíticas e terapias sob medida. Em vez de perseguir “marcadores universais” ou soluções milagrosas, a ciência atual recomenda:

  • privilegiar função e contexto clínico ao interpretar exames e decidir intervenções;
  • reconhecer a heterogeneidade interindividual na resposta a dietas e fármacos;
  • avaliar probióticos por cepa, dose e indicação, monitorando segurança;
  • usar FMT de acordo com diretrizes e evidências sólidas (por ora, essencialmente em CDI recorrente);
  • considerar a dieta como alavanca potente e rápida de modulação microbiana, dentro de planos terapêuticos supervisionados.

Conclusão

A microbiota intestinal não cabe em slogans. Ela não é um placar de diversidade, uma lista de “bactérias do bem”, um remédio único ou um inimigo oculto. É um consórcio vivo, em diálogo constante com o hospedeiro, a dieta, os fármacos e o ambiente. A boa ciência — como a sintetizada na perspectiva de 2025 — recomenda abandonar crenças simplistas e adotar uma leitura funcional, personalizada e prudente. Assim, a microbiota deixa de ser “mito” e se torna o que de fato é: uma peça-chave, porém complexa, da saúde humana, a ser estudada e modulada com critério.

Fonte: https://doi.org/10.3390/nu17193121

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