O estudo publicado na Frontiers in Nutrition examinou como o leite materno muda ao longo de 24 horas, analisando hormônios, proteínas imunes e o microbioma do leite. A equipe recrutou 38 lactantes e coletou amostras em quatro horários fixos — 6h, 12h, 18h e 0h — para quantificar cortisol, melatonina, IgA, lactoferrina e ocitocina por ELISA, além de caracterizar a microbiota por sequenciamento de 16S rRNA. O objetivo foi entender se existiría um “ritmo biológico do leite” e quais fatores maternos e do bebê modulam esse ritmo (artigo completo).
Como o estudo foi conduzido
As participantes foram orientadas a expressar 10 mL de leite em cada ponto de coleta dentro do mesmo dia. As amostras foram processadas com protocolos padronizados para hormônios e proteínas imunes e, para o microbioma, foi usado pipeline QIIME2 com identificação de variantes de sequência (ASVs) e comparação com o banco SILVA. A análise estatística contemplou testes paramétricos e não paramétricos, medidas de diversidade alfa e beta, além de redes microbianas. A amostra incluiu mães de diferentes IMCs e bebês de 0 a 12 meses, com registro de modo de alimentação e demais características clínicas do binômio mãe-bebê.
Achados principais sobre hormônios e proteínas imunes
O padrão circadiano ficou evidente para dois hormônios: melatonina atingiu pico à meia-noite, enquanto cortisol foi mais alto às 6h. Esses comportamentos mantiveram-se mesmo quando as análises foram estratificadas por idade do lactente, com exceção de recém-nascidos com menos de 1 mês, nos quais as flutuações não foram significativas. Já ocitocina, IgA e lactoferrina não variaram de forma consistente apenas pelo horário, embora lactoferrina tenha exibido diferenças por tempo do dia em mães de bebês entre 1 e 6 meses.
Outro ponto robusto foi o efeito da idade do bebê: IgA e lactoferrina apresentaram concentrações mais altas no primeiro mês de vida, com declínio posterior, ao passo que o cortisol também diminuiu com a idade. Tais padrões alinham-se ao papel protetor dessas moléculas nas fases iniciais da colonização intestinal e da maturação imune.
O estudo também explorou diferenças segundo o sexo do lactente: mães de meninas mostraram variações mais marcantes ao longo do dia para IgA e lactoferrina; para cortisol e melatonina, as oscilações foram semelhantes entre os sexos. Esses achados sugerem que sinais biológicos relacionados ao sexo do bebê podem influenciar a composição temporal do leite, tema ainda pouco descrito na literatura.
Por fim, observou-se influência do IMC materno: mães com obesidade exibiram atenuação das flutuações circadianas de cortisol e melatonina, com menor diferença entre picos e vales ao longo do dia. IgA variou por horário apenas no grupo com sobrepeso, e ocitocina e lactoferrina não foram consistentemente moduladas pelo IMC. Esses dados levantam hipóteses sobre como o estado metabólico materno poderia modular sinais temporais veiculados pelo leite.
O que mudou no microbioma do leite
As medidas globais de diversidade (alfa e beta) permaneceram estáveis ao longo das 24 horas quando avaliadas sem estratificações. Porém, ao observar idade do lactente e IMC materno, o estudo detectou enriquecimentos temporais de ASVs: no período noturno houve aumento de bactérias associadas à pele (por exemplo, Prevotella e Finegoldia), enquanto, durante o dia, houve elevação de bactérias ambientais (como Chryseobacterium, ordens Clostridiales e cianobactérias YS2). Em mães com obesidade, essas oscilações de táxons específicos foram mais pronunciadas. A rede microbiana indicou que diferentes ASVs tornaram-se mais centrais em horários distintos (por exemplo, Bifidobacterium à meia-noite), sugerindo mudanças nos papéis ecológicos ao longo do dia, mesmo sem alterar a diversidade total (seção de microbioma).
Por que o “timing” do leite pode importar
O conjunto dos resultados reforça a ideia de que o leite materno carrega sinais temporais — hormonais, imunológicos e microbianos — potencialmente relevantes para a organização dos ritmos biológicos do bebê, especialmente nos primeiros meses, quando o sistema circadiano ainda está em maturação. A pesquisa destaca que alimentar com leite ordenhado em horários diferentes daquele em que foi produzido, prática comum em contextos de trabalho e logística doméstica, pode dessincronizar esses sinais temporais. O trabalho não estabelece desfechos clínicos de longo prazo, mas indica a plausibilidade biológica de que a assincronia entre expressão e oferta do leite altere pistas ligadas a sono, metabolismo e regulação imune do lactente. Os autores defendem que futuras diretrizes considerem a dimensão circadiana da amamentação e que estudos prospetivos avaliem impactos clínicos dessa sincronização/desalinhamento.
Limitações e próximos passos
As análises por IMC basearam-se em autorreferência de peso no momento da coleta, o que pode introduzir imprecisão no puerpério. Além disso, não houve poder estatístico para cruzar todos os fatores demográficos com o tempo do dia. Apesar dessas limitações, o desenho com coletas seriadas em 24 horas, a padronização laboratorial e as abordagens estatísticas e ecológicas conferem consistência aos achados exploratórios. A recomendação central dos autores é avançar em ensaios longitudinais que relacionem o timing do leite a desfechos funcionais no bebê (sono, crescimento, imunidade) e que testem estratégias práticas para preservar os ritmos do leite quando a ordenha e a oferta são necessárias em horários distintos.
O que este estudo acrescenta
Em síntese, a investigação mostra que:
- Melatonina (pico à 0h) e cortisol (pico às 6h) flutuam no leite em 24h;
- IgA e lactoferrina são mais altas no primeiro mês e podem variar por sexo do lactente e faixa etária;
- IMC materno elevado atenua o “desenho” circadiano de melatonina e cortisol;
- O microbioma do leite mantém diversidade estável, mas alterna táxons-chave conforme o horário (mais associados à pele à noite; mais ambientais de dia).
A principal implicação é reconhecer o leite materno como fluido biológico temporalmente organizado. Em contextos de uso de leite ordenhado, considerar o horário de expressão ao planejar a oferta poderá ser uma hipótese operacional para estudos futuros e, eventualmente, para recomendações, caso evidências clínicas confirmem benefícios.
