A compreensão da dieta dos neandertais é uma peça-chave para desvendar aspectos de sua adaptação e evolução biológica. Por décadas, pesquisadores têm usado análises isotópicas em ossos fósseis para estimar os alimentos consumidos por essas populações. O estudo de Jaouen et al., publicado em 2019 na revista Proceedings of the National Academy of Sciences (PNAS), traz um avanço importante nessa área, usando análises isotópicas de aminoácidos específicos do colágeno para resolver debates antigos sobre a real posição trófica dos neandertais.
Contexto e perguntas centrais
Desde os primeiros estudos isotópicos, detectou-se que os ossos de neandertais apresentavam valores elevados de nitrogênio-15 (δ15N), ainda mais altos que os de grandes carnívoros como hienas e lobos encontrados nos mesmos sítios arqueológicos. Isso sugeria que os neandertais ocupavam o topo da cadeia alimentar, consumindo principalmente grandes mamíferos herbívoros.
No entanto, essa conclusão passou a ser questionada. Alguns pesquisadores levantaram hipóteses alternativas, como o consumo de mamutes (ricos em δ15N), filhotes de animais (que acumulam mais δ15N por causa da amamentação), carne putrefata, peixes de água doce ou mesmo cogumelos. Outros sugeriram que mudanças climáticas poderiam ter alterado os valores isotópicos das plantas locais, impactando toda a teia alimentar.
O que o estudo investigou
Para testar essas hipóteses, Jaouen e colegas analisaram amostras de colágeno de dentes e ossos de dois neandertais de sítios franceses — Les Cottés e Grotte du Renne — aplicando uma técnica chamada análise isotópica de aminoácidos específicos (Compound-Specific Isotope Analysis, CSIA). Essa abordagem permite medir separadamente os isótopos de carbono e nitrogênio em aminoácidos como fenilalanina e ácido glutâmico, eliminando interferências ambientais e oferecendo uma estimativa mais precisa da posição trófica.
Além dos fósseis de neandertais, foram analisados também restos de fauna associada, como hienas, cavalos, renas e mamutes, permitindo um mapeamento detalhado da rede alimentar local.
Principais resultados
Os resultados foram claros:
- O neandertal de Les Cottés apresentou um nível trófico estimado de 2,9, compatível com uma dieta exclusivamente carnívora baseada em herbívoros terrestres.
- O neandertal infantil de Grotte du Renne, AR-14, apresentou nível trófico de 3,2, mais alto devido à amamentação, mas ainda dentro do esperado para um carnívoro.
- Não houve evidências de consumo relevante de peixe de água doce ou de mamutes nesses sítios.
- O δ13C (isótopo de carbono-13) dos aminoácidos confirmou que a fonte proteica era terrestre e não aquática.
- A diferença entre os neandertais e os carnívoros analisados parece ser explicada não por uma dieta mais variada ou processada, mas pelo foco seletivo na caça de determinados herbívoros, especialmente renas, o que é coerente com as evidências arqueológicas.
Implicações do estudo
Este estudo confirma que os neandertais eram predadores de topo, especializados em carne de grandes herbívoros, mesmo após a chegada dos humanos modernos à Europa. Embora traços de plantas tenham sido encontrados em cálculo dentário em outros estudos, esses vegetais não contribuíam significativamente como fonte de proteína na dieta.
Outro ponto importante é que não há necessidade de invocar cenários complexos (como consumo de carne putrefata ou de cogumelos) para explicar os valores elevados de δ15N. O consumo de carne de herbívoros por si só explica os dados obtidos.
Além disso, ao comparar os 29 indivíduos neandertais analisados com essa e outras técnicas isotópicas até hoje, o padrão alimentar mostra-se surpreendentemente estável ao longo de dezenas de milhares de anos.
Conclusão
A aplicação de análises de isótopos em aminoácidos específicos representa um avanço metodológico significativo para a arqueologia e a paleoantropologia. Jaouen et al. demonstram que, mesmo diante das mais altas concentrações de δ15N registradas em neandertais, a explicação mais simples e respaldada pelos dados é uma dieta essencialmente carnívora, fundamentada na caça de grandes herbívoros. Esses achados reforçam a visão dos neandertais como caçadores altamente especializados, bem adaptados aos ambientes do Paleolítico.
