Durante muitos anos, as recomendações em cardiologia destacaram o papel do HDL medido apenas como “colesterol do HDL” (HDL-C) como marcador inverso de risco de doença coronariana. No entanto, medicamentos que aumentam fortemente o HDL-C, como os inibidores da CETP, não conseguiram reduzir eventos cardiovasculares, levantando dúvidas sobre se o simples aumento de HDL-C é um alvo terapêutico válido.
Paralelamente, avançou a compreensão de que o HDL é um conjunto heterogêneo de partículas, contendo dezenas de proteínas com funções distintas: metabolismo de lipídios, transporte reverso de colesterol, antioxidação, imunidade, hemostasia e inibição de proteases. Dentro desse sistema, pequenas subfrações de HDL definidas por proteínas específicas – as chamadas “subespécies de HDL baseadas em proteína” – passaram a ser associadas, de forma direta ou inversa, ao risco de doença coronariana, AVC e diabetes.
O artigo analisado investiga uma pergunta bastante específica: modificar a distribuição de carboidratos, gordura insaturada e proteína na dieta consegue alterar essas subespécies de HDL em uma direção compatível com menor risco de doença coronariana?
Desenho do estudo: o que foi feito na prática
Os autores utilizaram amostras do ensaio clínico OmniHeart (Optimal Macronutrient Intake Trial to Prevent Heart Disease), um estudo de alimentação controlada, randomizado, com desenho cruzado em três períodos. Participaram 141 adultos com pré-hipertensão ou hipertensão estágio 1, em geral com sobrepeso ou obesidade.
Cada pessoa consumiu, em sequência aleatória, três dietas, todas com baixa gordura saturada e padrão semelhante ao DASH (rico em frutas, vegetais, grãos integrais e laticínios magros), mas com macronutrientes distribuídos de forma diferente:
Dieta rica em carboidratos (CARB)
- 58% de carboidratos
- 27% de gordura
- 15% de proteína
- Dieta rica em gordura insaturada (UNSAT)
- 48% de carboidratos
- 37% de gordura (predominantemente monoinsaturada)
- 15% de proteína
- Dieta rica em proteína (PROT)
- 48% de carboidratos
- 27% de gordura
- 25% de proteína (cerca de metade de origem vegetal)
Em ambas as dietas rica em gordura insaturada e rica em proteína, 10% das calorias provenientes de carboidratos foram substituídas por gordura insaturada ou proteína, respectivamente, mantendo-se constante o teor de fibras. O peso corporal foi mantido estável e a atividade física habitual, preservada. Após 4 semanas em cada dieta, foram coletadas amostras de sangue em jejum.
O que são subespécies de HDL baseadas em proteína?
Para ir além do HDL-C, o estudo mediu a quantidade da principal proteína do HDL, a apoA1, dentro de 15 subespécies “menores” de HDL, cada uma definida pela presença de uma proteína específica na partícula (como apoE, apoC1, plasminogênio, alfa-2-macroglobulina etc.). Essas subespécies cobrem funções em:
- Metabolismo de lipídios e transporte de colesterol (apoA2 HDL, apoC1 HDL, apoE HDL, apoC2 HDL, apoC3 HDL, apoA4 HDL, apoJ HDL)
- Atividade antioxidante (HDL contendo ceruloplasmina, paraoxonase 1, haptoglobina)
- Imunidade e complemento (HDL contendo complemento C3, apoL1)
- Hemostasia e fibrinólise (HDL contendo fibrinogênio e plasminogênio)
- Inibição de proteases (HDL contendo alfa-1-antitripsina e alfa-2-macroglobulina)
Estudos prospectivos prévios mostraram que algumas dessas subespécies se associam a menor risco de doença coronariana, como:
- HDL com apoA2
- HDL com apoC1
- HDL com apoE
Por outro lado, outras se associam a maior risco, como:
- HDL com alfa-2-macroglobulina (A2M)
- HDL com plasminogênio (PLMG)
- HDL com complemento C3 (CoC3)
- HDL com haptoglobina (HP)
- HDL com apoC3
- HDL com apoL1
O foco do artigo é verificar se a simples manipulação de macronutrientes – em dietas já saudáveis – desloca esse “painel de subespécies” para um padrão mais favorável.
Efeitos de substituir carboidratos por gordura insaturada
Quando se comparou a dieta rica em gordura insaturada com a dieta rica em carboidratos, observou-se que substituir 10% das calorias de carboidratos por gordura insaturada:
- Aumentou o HDL-C e o total de apoA1.
- Aumentou a apoA1 em subespécies relacionadas ao metabolismo de lipídios associadas a menor risco de doença coronariana:
- apoA2 HDL
- apoC1 HDL
- apoE HDL
- Aumentou também HDL contendo haptoglobina (HP), proteína com função antioxidante, embora essa subespécie específica já tenha sido vinculada a risco mais alto em estudos observacionais.
Além disso, houve redução da quantidade de apoE total carregada no HDL (“apoE em HDL”), mesmo com aumento da subespécie apoE HDL. Estudos anteriores sugerem que níveis mais altos de apoE HDL se associam a menor risco, enquanto maior carga de apoE total nas partículas pode se relacionar a risco mais alto; o padrão encontrado aqui (mais apoE HDL, menos apoE total em HDL) é considerado favorável nesse contexto.
Em conjunto, esses achados indicam que aumentar gordura insaturada e reduzir carboidratos em uma dieta saudável desloca o HDL para um perfil de subespécies mais alinhado com menor risco de doença coronariana, sobretudo pelo aumento de apoA2 HDL, apoC1 HDL e apoE HDL.
Efeitos de substituir carboidratos por proteína
Quando a comparação foi entre a dieta rica em proteína e a dieta rica em carboidratos, ou seja, substituir 10% das calorias de carboidratos por proteína, o padrão foi diferente:
Houve redução das subespécies de HDL ligadas a hemostasia e inibição de proteases, muitas delas previamente associadas a maior risco de doença coronariana:
- HDL com alfa-2-macroglobulina (A2M)
- HDL com plasminogênio (PLMG)
- HDL com apoL1
- Além de queda em HDL com alfa-1-antitripsina (A1AT) e fibrinogênio (FBG)
Essas proteínas participam de processos de coagulação, fibrinólise, inflamação, imunidade e resposta a infecções. Estudos anteriores sugerem que maiores concentrações de A2M HDL, PLMG HDL e apoL1 HDL se associam a risco cardiovascular aumentado; portanto, a queda observada com maior teor de proteína na dieta tende a ser interpretada como um deslocamento do HDL para um perfil menos pró-trombótico e menos pró-inflamatório.
Assim como na dieta rica em gordura insaturada, a dieta rica em proteína também aumentou a subespécie apoE HDL e reduziu a quantidade total de apoE em HDL, reforçando a ideia de que a redução de carboidratos, por si só, contribui para esse padrão.
Papel específico da redução de carboidratos
Uma observação importante do artigo é que tanto a dieta rica em gordura insaturada quanto a dieta rica em proteína compartilham a mesma característica central: menor proporção de carboidratos em relação à dieta rica em carboidratos.
Ao analisar conjuntamente os dados, os autores concluíram que:
- O aumento de apoE HDL e a redução de apoE total em HDL se repetem nas duas dietas com menos carboidratos.
- Esses efeitos parecem estar mais ligados à diminuição de carboidratos do que especificamente ao aumento de gordura insaturada ou proteína.
Do ponto de vista mecanístico, isso é coerente com estudos cinéticos prévios, que sugerem que dietas com menos carboidratos e mais gordura insaturada aumentam a secreção hepática de partículas de HDL contendo apoE, favorecendo o transporte reverso de colesterol.
Análise de rede: HDL como sistema, não como número isolado
O estudo vai além de comparar subespécie por subespécie. Utilizando análise de rede, os autores mostram que:
- As subespécies de HDL relacionadas a metabolismo de lipídios (apoA2 HDL, apoC1 HDL, apoC2 HDL, apoC3 HDL, apoE HDL) formam um “núcleo funcional” interligado.
- As subespécies ligadas a hemostasia e inibição de proteases (FBG HDL, PLMG HDL, A2M HDL, A1AT HDL) formam outro agrupamento.
- A substituição de carboidratos por gordura insaturada atua principalmente no cluster de metabolismo de lipídios, elevando subespécies protetoras.
- A substituição de carboidratos por proteína atua predominantemente no cluster de hemostasia/protease, reduzindo subespécies associadas a maior risco.
Isso reforça a visão de que modificações na dieta não apenas “sobem ou descem” o HDL-C, mas reorganizam um sistema complexo de partículas, com implicações em transporte de colesterol, inflamação, coagulação e imunidade.
Limitações e cuidados na interpretação
Os autores apontam limitações importantes:
- O período de intervenção foi relativamente curto (4 semanas em cada dieta), o que não permite afirmar efeitos de longo prazo.
- O estudo incluiu adultos com sobrepeso/obesidade e pré-hipertensão/hipertensão em dietas semelhantes ao padrão DASH; não se sabe se os mesmos efeitos ocorreriam em populações mais saudáveis ou com outros padrões alimentares (por exemplo, mediterrâneo ou dietas estritamente baseadas em plantas).
- Foram avaliadas 15 subespécies menores, enquanto o proteoma do HDL inclui mais de 200 proteínas, com inúmeras combinações possíveis.
- O estudo analisou biomarcadores (subespécies de HDL), não desfechos clínicos como infarto ou mortalidade; as conclusões se restringem a perfis associados, em outros trabalhos, a maior ou menor risco.
Dessa forma, os resultados não devem ser extrapolados para além do que o desenho permite: trata-se de evidência mecanística e de biomarcadores, coerente com estudos prospectivos prévios, mas não de ensaio de desfecho clínico.
Conclusão: o que este estudo realmente mostra
De forma resumida, o artigo conclui que:
Substituir parcialmente carboidratos por gordura insaturada,
- Aumenta subespécies de HDL envolvidas em transporte de colesterol (apoA2 HDL, apoC1 HDL, apoE HDL), previamente associadas a menor risco de doença coronariana.
- Substituir parcialmente carboidratos por proteína
- Reduz subespécies de HDL relacionadas a hemostasia, inibição de proteases e imunidade (A2M HDL, PLMG HDL, apoL1 HDL), previamente associadas a maior risco de doença coronariana.
- Em ambos os casos, a menor ingestão de carboidratos parece ter papel central na modulação da subespécie apoE HDL e da quantidade total de apoE em HDL, em direção a um perfil considerado mais favorável.
Na visão dos autores, esses achados apoiam a ideia de que melhorar a qualidade da dieta reduzindo carboidratos e aumentando gordura insaturada ou proteína, dentro de um padrão alimentar saudável, pode modular a função do HDL em direção a menor risco de doença coronariana, por meio de alterações específicas em subespécies de HDL.
Ainda assim, eles reforçam que são necessários estudos adicionais – incluindo avaliação de outras subespécies, análise detalhada de lipídios associados ao HDL e ensaios de longo prazo com desfechos clínicos – para consolidar o papel dessas modificações no risco cardiovascular real.
