Ciclo de Randle: o ciclo glicose–ácido graxo e seu papel na sensibilidade à insulina e nos distúrbios metabólicos do diabetes mellitus (1963)


1. O que exatamente foi descoberto?

O artigo clássico de Randle descreveu algo que, em linguagem simples, pode ser chamado de “briga de combustíveis” dentro do corpo. O organismo pode usar principalmente dois tipos de “combustível” para gerar energia:

  • Glicose (o açúcar no sangue).
  • Ácidos graxos (gorduras circulantes ou estocadas no tecido adiposo).

O achado central do trabalho foi mostrar que, quando o corpo está queimando muita gordura, ele passa a usar menos glicose, mesmo que a glicose esteja disponível e a insulina esteja presente. Esse mecanismo ficou conhecido como Ciclo de Randle ou ciclo glicose–ácido graxo e foi detalhado no artigo original de 1963 publicado no periódico The Lancet.

Em termos simples:

Quanto mais o músculo queima gordura, menos ele tende a queimar glicose naquele momento.

2. Por que isso é tão importante para entender disfunção metabólica?

Antes desse trabalho, a visão sobre diabetes e resistência à insulina era muito centrada em “falta de insulina” ou “insucesso da insulina”. O achado de Randle acrescentou uma camada essencial:

  • O problema não é apenas “quanta insulina existe”, mas também qual combustível o tecido está priorizando naquele contexto.
  • Quando há muito ácido graxo circulante (como costuma ocorrer em obesidade, esteatose hepática e diabetes tipo 2), o músculo e outros tecidos passam a queimar principalmente gordura e a rejeitar glicose, usando-a menos como fonte de energia.

Esse comportamento ajuda a explicar por que, mesmo com insulina presente, a glicose permanece alta no sangue em muitas pessoas com diabetes tipo 2: os tecidos não estão aceitando glicose com facilidade, porque já estão “ocupados” queimando gordura.

Assim, o Ciclo de Randle:

  • Conecta diretamente excesso de ácidos graxos circulantes e resistência à insulina.
  • Ajuda a entender que a disfunção metabólica não é apenas um problema de açúcar, mas um problema de competição e desajuste de combustíveis dentro das células.

3. Uma forma simples de visualizar o mecanismo

Para tornar a ideia concreta, pode-se imaginar uma célula muscular como uma “usina” que tem duas esteiras de abastecimento:

  1. Uma esteira traz glicose.
  2. A outra esteira traz ácidos graxos (gordura).

Em condições normais, a usina consegue alternar entre essas esteiras conforme a situação (jejum, alimentação, atividade física). Essa capacidade de alternar é chamada de flexibilidade metabólica.

O achado de Randle mostra que:

  • Quando a esteira da gordura está exageradamente abastecida e acelerada, a usina reduz a entrada de glicose.
  • Produtos da queima de gordura se acumulam dentro da célula e bloqueiam etapas-chave do uso da glicose, como se desligassem parte do caminho que a glicose percorre para virar energia.
  • Resultado: a glicose continua circulando no sangue com mais dificuldade de ser usada, o que contribui para hiperglicemia e resistência à insulina.

Essa visão é crucial para entender que a disfunção metabólica envolve prioridade de combustíveis e não apenas “defeito isolado no açúcar”.

4. O que isso revela sobre resistência à insulina

O Ciclo de Randle ajuda a reorganizar a compreensão da resistência à insulina em alguns pontos-chave:

  1. Excesso de gordura circulante importa. Não é só a glicose alta que gera problema; níveis cronicamente elevados de ácidos graxos no sangue também contribuem diretamente para a dificuldade dos tecidos em responder à insulina.
  2. O músculo não é apenas “vítima passiva”. O músculo esquelético, o coração e outros tecidos tomam decisões metabólicas: em certas condições, passam a preferir gordura e fecham a porta para a glicose, mesmo com insulina.
  3. Disfunção metabólica é um desequilíbrio de “escolha de combustível”. A ideia de que glicose e gordura “competem” ajuda a entender por que, em estados de obesidade, diabetes tipo 2 e síndrome metabólica, o corpo parece “travado” em um padrão em que nem usa bem a glicose, nem lida bem com o excesso de gordura.

Essa leitura não substitui outros mecanismos conhecidos hoje (como inflamação, acúmulo de gordura dentro do músculo, alterações mitocondriais), mas mostra que a própria organização do fluxo de energia já cria um cenário favorável à resistência à insulina.

5. Contribuição para a visão moderna de disfunção metabólica

Ao longo das décadas, o achado de Randle foi sendo integrado a um quadro mais amplo de pesquisa metabólica. A importância principal desse trabalho para o entendimento atual da disfunção metabólica pode ser resumida em alguns pontos:

  • Introduziu o conceito de “competição de combustíveis”. A ideia de que glicose e ácidos graxos competem pela mesma maquinaria metabólica abriu caminho para estudar a inflexibilidade metabólica típica de estados de doença.
  • Mostrou que lipídios são protagonistas, não apenas coadjuvantes. Em vez de enxergar a gordura apenas como armazenamento, o estudo colocou os ácidos graxos como reguladores ativos do metabolismo da glicose.
  • Ajudou a ligar obesidade, resistência à insulina e diabetes tipo 2. Ao mostrar que níveis elevados de ácidos graxos podem gerar resistência à insulina, o Ciclo de Randle uniu, em um mesmo raciocínio, o aumento de gordura corporal e as alterações no manuseio da glicose, características centrais do diabetes tipo 2.
  • Orientou novas linhas de pesquisa. A partir desse conceito, muitos estudos passaram a explorar como reduzir a sobrecarga de ácidos graxos ou melhorar a capacidade de alternar entre combustíveis poderia ajudar a restaurar a sensibilidade à insulina.

Em termos didáticos, o achado mostra que a disfunção metabólica é, em grande parte, um problema de organização e prioridade de energia: o organismo passa a trabalhar de forma desajustada, priorizando o combustível “errado” nas horas erradas.

6. Limites e contexto do achado

É importante notar que:

  • O Ciclo de Randle não explica sozinho toda a fisiopatologia do diabetes e da síndrome metabólica.
  • A ciência atual reconhece muitos outros fatores: inflamação crônica, estresse oxidativo, acúmulo de gordura em fígado e músculo, alterações hormonais e genéticas.
  • Ainda assim, a descoberta de que alta oxidação de gordura pode reduzir diretamente o uso de glicose permanece um pilar para entender a comunicação entre lipídios, glicose e insulina.

Portanto, o valor desse achado está em ter fornecido uma peça central do quebra-cabeça: ele mostra como o próprio fluxo de energia pode gerar resistência à insulina e contribuir para a disfunção metabólica, muito antes de surgirem complicações clínicas como infarto, AVC ou doença renal.

7. Síntese final

Em resumo, o trabalho de Randle mostrou que:

  • O organismo alterna entre glicose e gordura como combustíveis.
  • Quando a queima de gordura é excessiva e crônica, o uso de glicose é inibido dentro das células.
  • Esse mecanismo ajuda a explicar a resistência à insulina e a hiperglicemia observadas em muitas pessoas com diabetes tipo 2.

A importância desse achado está em ter revelado que a disfunção metabólica não é apenas um problema de “açúcar alto”, mas um problema de como os tecidos organizam e priorizam seus combustíveis. Essa mudança de perspectiva continua influenciando a pesquisa e o entendimento clínico das doenças metabólicas até hoje.

Fonte: https://doi.org/10.1016/S0140-6736(63)91500-9

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