Redução de carboidratos e um modelo holístico de cuidado no manejo do diabetes: insights de uma auditoria retrospectiva de vários anos na Nova Zelândia


Há um tipo de evidência que não nasce em laboratórios perfeitos, mas no dia a dia de clínicas, com gente real, rotinas imperfeitas e escolhas difíceis. Foi esse o caminho seguido por um estudo publicado na Nutrients, que revisou registros de três serviços de atenção primária na Nova Zelândia para entender o que aconteceu quando pessoas com pré-diabetes ou diabetes tipo 2 passaram a ser acompanhadas por um modelo de cuidado centrado em três frentes: redução de carboidratos com comida de verdade, suporte estruturado para mudança de comportamento (health coaching) e ações comunitárias ou em grupo.

O que foi observado na prática

O estudo não foi um ensaio clínico randomizado. Ele foi uma auditoria retrospectiva: os autores olharam para trás, nos dados já registrados, para descrever tendências de saúde ao longo do acompanhamento. Isso importa porque o trabalho não tenta provar uma causa única; ele descreve o que se associou ao modelo de cuidado aplicado na rotina, com as limitações inevitáveis desse tipo de desenho.

A população total analisada foi de 106 adultos com pré-diabetes ou diabetes tipo 2, acompanhados por uma mediana de 19 meses. As três clínicas atendiam perfis bem diferentes de pessoas (incluindo serviços com maior proporção de Maori e povos do Pacífico e serviços com maioria europeia), o que dá ao estudo um retrato mais próximo do “mundo real”, ainda que com registros incompletos em alguns desfechos.

O marcador central: HbA1c, a “memória” da glicose

Para quem acompanha diabetes, a HbA1c costuma ser um número que pesa. Ela funciona como uma espécie de “média dos últimos meses” da glicose no sangue, e é uma medida muito usada para monitorar controle glicêmico.

No conjunto de participantes, a auditoria observou redução estatisticamente significativa na HbA1c ao longo do seguimento. Em outras palavras: na média do grupo, os números caminharam na direção desejada. O estudo também descreveu uma relação observada entre perda de peso e redução de HbA1c, sugerindo que, dentro daquele acompanhamento, quem perdeu mais peso tendia a melhorar mais a HbA1c — uma associação, não uma prova de causa.

Mudanças de categoria: quando alguns deixaram de “subir o morro”

Além do número em si, os autores avaliaram transições de status metabólico:

  • Entre pessoas com diabetes tipo 2, 32,1% atingiu “reversão” conforme o critério adotado no estudo (HbA1c abaixo de um ponto de corte definido pelos autores, com observações específicas sobre uso de metformina no critério).
  • Entre pessoas com pré-diabetes, 44,4% atingiu normoglicemia na avaliação final.

Esses percentuais não significam que “funciona para todo mundo”. Eles mostram que, dentro daquele serviço e para quem permaneceu em acompanhamento, uma parcela relevante apresentou melhora suficientemente grande para mudar de categoria.

E o restante do corpo: peso, pressão, fígado, rins e lipídios

Em saúde metabólica, raramente um marcador muda sozinho. O estudo também acompanhou outros parâmetros (quando havia dados disponíveis):

  • Peso: nas clínicas com registros pareados, houve redução mediana (da ordem de poucos quilos), estatisticamente significativa.
  • Pressão arterial: as mudanças foram pequenas e, no conjunto, não se destacaram como grandes viradas estatísticas.
  • Enzimas hepáticas: houve melhora consistente em ALT (queda estatisticamente significativa), enquanto outros marcadores avaliados não mostraram mudanças relevantes.
  • Função renal: os marcadores analisados permaneceram estáveis.
  • Lipídios no sangue: os resultados foram mistos e, no geral, sem mudanças amplas no grupo. O estudo descreve estabilidade de LDL e mudanças pequenas em HDL, além de ausência de alterações relevantes em alguns índices derivados, conforme os dados disponíveis.

Um cuidado prático importante: dieta e medicação não são peças soltas

Um detalhe do artigo chama atenção por ser muito concreto: em participantes usando inibidores de SGLT2, o serviço descrito evitava dieta cetogênica, por preocupação com risco de cetoacidose diabética euglicêmica. Isso mostra que, no mundo real, “reduzir carboidratos” não foi tratado como regra cega, mas como uma estratégia adaptada ao contexto clínico e medicamentoso.

O que este estudo permite concluir, e o que não permite

O valor desse trabalho está em retratar a realidade: pessoas, clínicas diferentes, adesão variando, registros incompletos e resultados que melhoram para muitos, mas não de forma uniforme. Ao mesmo tempo, suas limitações precisam ser levadas a sério:

  • Sem grupo controle e sem randomização, não dá para afirmar que a melhora ocorreu apenas por causa da redução de carboidratos; o modelo incluiu coaching e suporte comunitário, e outros fatores não medidos podem ter influenciado.
  • O estudo reconhece ausência de medidas detalhadas e padronizadas da ingestão alimentar e variações de acompanhamento e registro entre as clínicas.

Ainda assim, a auditoria acrescenta uma mensagem sóbria e útil: quando um serviço de saúde organiza um cuidado contínuo que combina orientação alimentar com redução de carboidratos, apoio de comportamento e rede social, uma parte relevante das pessoas pode melhorar HbA1c e, em alguns casos, mudar de categoria metabólica, com sinais adicionais como perda de peso e melhora de ALT, sem grandes alterações adversas nos marcadores renais observados no período analisado.

Fonte: https://doi.org/10.3390/nu17243953

Postagem Anterior Próxima Postagem
Rating: 5 Postado por: