O mito popular: “o pão na época de Jesus era diferente, então era ‘seguro’ para a saúde”
A ideia popular costuma ser simples: o pão do século I seria “mais natural”, feito com trigo “menos modificado”, e por isso seria seguro para a saúde; já o pão atual seria problemático porque o trigo moderno teria “mudado” e se tornado mais agressivo.
As evidências permitem uma leitura mais fiel e, ao mesmo tempo, mais útil: o pão antigo era diferente em vários aspectos (espécies usadas, moagem, fermentação e escala de produção), mas isso não autoriza concluir que ele era “ok para todo mundo”. O ponto mais importante é direto: o glúten já existia e continua sendo o principal gatilho de efeitos deletérios bem estabelecidos em grupos específicos, especialmente na doença celíaca. Ao mesmo tempo, quando se avalia o que realmente mudou no glúten e no trigo, as revisões e comparações não sustentam generalizações do tipo “antigo sempre melhor” ou “moderno sempre pior”.
O que era realmente diferente no trigo e no pão antigos
Espécies de trigo e “arquitetura genética” não eram as mesmas
Os primeiros trigos domesticados incluíram formas como einkorn (diploide) e emmer (tetraploide), que se diferenciam do trigo de panificação moderno (Triticum aestivum, hexaplóide AABBDD). Essa diferença não é detalhe: ela muda o “conjunto” de genes e proteínas do grão, incluindo famílias de proteínas associadas às propriedades panificáveis. A história evolutiva e a formação do trigo de panificação por hibridizações e alopoliploidização são descritas em revisão abrangente. Levy & Feldman (2022)
Domesticação selecionou traços que alteraram colheita e processamento
A domesticação selecionou características como ráquis não frágil (a espiga não se quebra facilmente) e maior facilidade de colheita, descritas em sínteses sobre domesticação de cereais e evolução sob cultivo. Heun et al. (1997); Feldman (2023).
Farinha e pão eram feitos com tecnologia doméstica e fornos de barro
A literatura de arqueologia e arqueologia experimental descreve o uso de moinhos manuais (moagem doméstica) e fornos como tannūr para assar pães no Oriente Próximo, com reconstruções experimentais de fornos e práticas de panificação. Cañas (2023); González Carretero (2020); e uma síntese popular baseada em arqueologia sobre moagem e forno em contexto bíblico em Biblical Archaeology Society (2015).
O fermento não era o “instantâneo” moderno
Na Antiguidade, a fermentação do pão dependia de culturas naturais/“massa velha” e, historicamente, isso se aproxima do que hoje se entende como fermentação natural. Uma revisão moderna resume décadas de conhecimento sobre fermentação de massa madre e descreve seu uso tradicional como alternativa à levedura comercial e a agentes químicos. Arora et al. (2021).
Síntese até aqui: há fundamento para dizer que o pão do século I tendia a ser feito com outros trigos (com frequência, emmer e outros cereais regionais), moagem doméstica e fermentações diferentes do padrão industrial rápido atual. Isso é “diferente” — mas diferença tecnológica não equivale, automaticamente, a “inofensivo”.
Mudou o “glúten”? O que revisões e estudos comparativos realmente mostram
Uma parte relevante do debate público afirma que o trigo moderno teria “mais glúten” e seria intrinsicamente mais agressivo. Quando a análise se limita ao que está documentado em revisões e comparações, o cenário fica mais específico:
- Revisões técnicas que comparam espécies “antigas” (como einkorn, emmer e espelta) com trigo moderno descrevem variação por genótipo e ambiente e não dão suporte a conclusões universais do tipo “antigo é sempre melhor”. Shewry & Hey (2015).
- Uma revisão crítica sobre “trigos antigos” e tolerância ao glúten conclui que não existe base para recomendar um tipo único de trigo como “melhor” para reduzir risco ou gravidade de doença celíaca, justamente porque a presença e a relevância de componentes imunogênicos variam. Brouns et al. (2022).
- Estudos comparativos detalhados mostram que existem diferenças na composição das proteínas do glúten entre espécies antigas e modernas, e que fatores ambientais também influenciam padrões de gliadinas e gluteninas. Geisslitz et al. (2019).
- Em trigo duro, há pesquisas avaliando como o melhoramento do século XX se relaciona com perfis do glúten, descrevendo diferenças específicas entre genótipos antigos e modernos no contexto de programas de melhoramento. De Santis et al. (2017).
- Uma revisão voltada à qualidade nutricional e saúde conclui que, com exceções discutidas (como certos micronutrientes minerais), as análises revisadas não sustentam a ideia de que o trigo moderno tenha qualidade inferior para a saúde humana de forma generalizada. Shewry (2020). Outra revisão do mesmo autor discute a hipótese de “benefícios” de trigos antigos e reforça limitações e variabilidade por genótipo e condições de cultivo. Shewry (2018).
Em resumo: mesmo que o trigo e o pão antigos fossem diferentes, a literatura não apoia a tese de que “por ser antigo” ele seria automaticamente mais seguro.
O ponto que derruba a promessa de “segurança”: glúten e epítopos imunogênicos
O impacto negativo mais bem estabelecido do trigo é a doença celíaca, na qual o glúten desencadeia resposta imune e lesão intestinal em pessoas predispostas. O detalhe crucial para o mito é que epítopos imunogênicos relevantes podem estar presentes em cultivares antigas e modernas.
- Um trabalho frequentemente citado avaliou epítopos relacionados à doença celíaca em diferentes trigos e discutiu a hipótese de que o melhoramento poderia ter contribuído para maior exposição a epítopos, mas sem uniformidade absoluta entre variedades. van den Broeck et al. (2010).
- Outro estudo relatou detecção de epítopos imunogênicos em cultivares históricos e modernos, sem relação simples com o ano de lançamento. Malalgoda et al. (2018).
Isso sustenta uma conclusão objetiva: para quem tem doença celíaca, “trigo antigo” não é sinônimo de segurança, e “pão antigo” também não.
Além do glúten: ATIs e ativação de imunidade inata
Outro eixo negativo relevante são as ATIs (inibidores de amilase/tripsina), proteínas do trigo que, em estudos experimentais, podem ativar imunidade inata.
- Um trabalho amplamente citado descreveu ativação via TLR4 e resposta pró-inflamatória associada à exposição a ATIs em modelos experimentais. Junker et al. (2012).
- Uma revisão discute ocorrência, funções e aspectos de saúde relacionados às ATIs. Geisslitz et al. (2022).
Aqui, porém, entra um ponto importante para evitar exageros: quando a pergunta é “o trigo moderno piorou isso?”, um estudo concluiu que o melhoramento de 1891 a 2010 não aumentou o conteúdo de ATIs no trigo avaliado. Geisslitz et al. (2023). Ou seja, o risco potencial das ATIs se relaciona mais ao trigo como alimento e à susceptibilidade individual, e não a uma prova de que o trigo moderno “criou” ATIs mais altas.
Sintomas gastrointestinais em não celíacos: fermentação curta, FODMAPs e tolerância
Mesmo fora da doença celíaca, existe um grupo de pessoas que relata sintomas com trigo/pão. As evidências sugerem que, em parte desses casos, o problema pode envolver carboidratos fermentáveis e processamento, e não apenas glúten.
- Um estudo experimental in vitro com microbiota fecal de doadores com síndrome do intestino irritável comparou pães e observou que fermentação tradicional longa e massa madre tenderam a gerar perfil de fermentação/gases mais favorável do que pão feito pelo Processo de Chorleywood, naquele modelo. Costabile et al. (2014).
- Isso não prova que “processo industrial adoece”, mas documenta um mecanismo plausível: fermentação mais curta pode deixar mais substratos fermentáveis chegando ao cólon, aumentando gases e desconforto em suscetíveis.
- Sobre frutanos (um tipo de FODMAP), estudos de variedades ao longo de décadas indicam que metas históricas de melhoramento não alteraram de forma consistente níveis de frutanos, com variação importante por safra/ano. Riaz et al. (2019).
Isso enfraquece a ideia de que “o trigo moderno é o culpado único” e reforça que, em sintomas funcionais, processamento e contexto dietético podem ser decisivos.
Alergia ao trigo (IgE) e anafilaxia dependente de cofatores
Há alergia ao trigo mediada por IgE e, em especial, a anafilaxia induzida por exercício dependente de trigo, em que a combinação “trigo + cofator (ex.: exercício)” pode desencadear reações graves, com envolvimento frequente de componentes do glúten (como ω-5-gliadina). Faihs et al. (2023).
Sensibilidade ao trigo/glúten não celíaca: sintomas são reais, mas o gatilho nem sempre é o glúten
Critérios de especialistas (Salerno) propõem desafio duplo-cego com placebo para confirmar sensibilidade ao glúten não celíaca. Catassi et al. (2015).
Quando estudos controlados separam glúten de outros componentes do trigo, os resultados mostram que:
- em dieta baixa em FODMAPs, não houve evidência de efeito específico/dose-dependente do glúten em pessoas com autorrelato de sensibilidade; Biesiekierski et al. (2013).
- em outro ensaio, frutanos (FODMAPs do trigo), e não o glúten, induziram mais sintomas gastrointestinais. Skodje et al. (2018).
Isso ajuda a desfazer o mito “glúten sempre faz mal”: em parte dos não celíacos, o problema pode estar no trigo por outros motivos (FODMAPs, contexto alimentar, expectativas), e não exclusivamente no glúten.
O que mudou no pão moderno que pode piorar o cenário, mesmo sem “culpar” o glúten
Aqui entra a diferença mais concreta entre “pão antigo” e boa parte do pão moderno: industrialização, refino e aceleração do processo.
- O Processo de Chorleywood (desenvolvido em 1961) substituiu fermentações longas por mistura mecânica intensa e produção rápida; um estudo clássico descreveu diferenças de composição entre pães feitos por esse processo e método convencional. Chamberlain et al. (1966).
- Em saúde pública, grandes estudos associam maior consumo de grãos refinados a piores desfechos em comparação com padrões alimentares com mais integrais, enquanto revisões e meta-análises relacionam maior ingestão de fibras e grãos integrais a melhores desfechos. Swaminathan et al. (2021); Reynolds et al. (2019).
Além disso, há discussão técnica sobre moagem e recombinação de frações do grão e como isso afeta o perfil da farinha; revisões e análises descrevem diferenças entre moagem por pedra e por cilindros e como a composição pode depender de como as frações são recombinadas. Carcea (2019); Cappelli et al. (2020).
Em resumo: parte do que hoje se chama “pão” virou, com frequência, um produto mais refinado e acelerado do que o pão artesanal, e isso pode influenciar densidade nutricional e tolerância gastrointestinal — sem precisar recorrer à ideia de que “o trigo antigo era magicamente seguro”.
Conclusão
As evidências permitem uma conclusão equilibrada:
- O pão do século I era diferente em espécie de grão, moagem e fermentação, com base em arqueologia e história alimentar; González Carretero (2020); Cañas (2023).
- Isso não garante “ausência de problemas de saúde”, porque o glúten já existia e continua sendo um gatilho real para doença celíaca e para alergias ao trigo; além disso, “trigos antigos” não são sinônimo de segurança para quem reage ao glúten. Brouns et al. (2022); Faihs et al. (2023).
- Em não celíacos, quando há sintomas, nem sempre o glúten é o culpado isolado; estudos controlados mostram papel relevante de frutanos (FODMAPs) em parte dos casos. Skodje et al. (2018); Biesiekierski et al. (2013). ATIs e processamento. Junker et al. (2012); Costabile et al. (2014).
No fim, a versão mais fiel às evidências é menos sedutora do que o mito: o pão antigo podia ser “diferente”, mas não era automaticamente “sem risco”, porque o risco depende da biologia do grão (glúten e outros componentes) e da biologia de quem consome — e não apenas do período histórico em que o pão foi assado.
