Passagem ártica – A turbulenta história da terra e do povo do Mar de Bering, 1697–1975


1. Quando o mar é a “despensa” principal

Em Arctic Passage, William R. Hunt descreve um mundo em que a sobrevivência diária depende quase totalmente de alimentos de origem animal. Nas margens do Mar de Bering, o clima rigoroso limita a agricultura, mas o mar e a tundra oferecem uma abundância específica: peixes, mamíferos marinhos, aves e grandes herbívoros como o caribu. Esses alimentos não eram um detalhe da cultura local; eram a base material de vida, combustível para o corpo e matéria-prima para roupas, ferramentas e abrigo.

O livro mostra que, muito antes da chegada dos russos e americanos, povos como Kamchadals, Koriaks, Chukchis, Aleutas e vários grupos Inuit/Eskimos construíram economias e formas de vida inteiras em torno de carnes, gordura e peles. Em um ambiente frio, com poucas plantas disponíveis, esses recursos animais eram a forma mais segura de obter energia, proteínas e nutrientes ao longo de todo o ano.

2. Peixes, cães e mamíferos marinhos na Sibéria e em Kamchatka

Nos territórios de Kamchatka e do nordeste da Sibéria, Hunt relata que a riqueza natural não se restringia às peles para comércio. No cotidiano, o que sustentava pessoas e animais domésticos vinha, sobretudo, das águas frias e da fauna local.

  • Salmão: os rios de Kamchatka eram extremamente ricos em salmão. Grandes quantidades de peixe eram capturadas no verão e secas para o inverno, servindo principalmente de alimento para os cães de trenó, indispensáveis ao transporte e à caça.
  • Cães: além de puxarem trenós e ajudarem na caça de carneiros selvagens e outros animais terrestres, os cães forneciam peles para roupas quentes. Assim, a cadeia alimentar incluía peixe para os cães e carne de caça e mamíferos marinhos para os humanos.

Os mamíferos marinhos ocupavam lugar central:

  • Focas eram abatidas na costa no inverno e nos rios e estuários no verão. Sua pele era usada para botas e vestimentas; o óleo fornecia iluminação e aquecimento nas habitações; carne e gordura eram preservadas e consumidas como importantes fontes de energia.
  • Leões-marinhos, focas-de-pelo, lontras-marinhas, baleias e morsas também contribuíam de forma relevante para a economia e a alimentação, variando de povo para povo.

Entre os Chukchis marítimos, a principal fonte de alimento era a baleia, caçada em grandes barcos, harpoada em mar aberto e rebocada até a costa para ser esquartejada. A carne e a gordura eram parte essencial da dieta. Já os Kamchadals, em geral, não perseguiam baleias no mar, mas aproveitavam intensamente os animais que encalhavam nas praias.

3. Aleutas: uma cultura moldada por carne, gordura e mar

O caso dos Aleutas, nas Ilhas Aleutas, é apresentado por Hunt como um exemplo extremo de dependência do mar. Ele observa que, apesar do clima ventoso e do solo pobre, aquelas ilhas conseguiam sustentar uma população relativamente densa (cerca de 20 a 25 mil pessoas) graças à “riqueza dos mares ao redor em peixes e mamíferos”.

Para os Aleutas:

  • Peixes e mamíferos marinhos eram a base da alimentação.
  • Aves, ovos, pequenas frutas e alguns animais terrestres complementavam a dieta, mas em volume bem menor.

A importância dos animais ia muito além da comida:

  • Peles e couro de focas, leões-marinhos e morsas serviam para roupas, calçados e capas.
  • Gordura e óleo eram usados como fonte de luz e aquecimento, queimados em lamparinas dentro de casas semi-enterradas aquecidas, aquecendo pessoas em ambientes extremamente hostis.
  • Ossos, marfim e intestinos eram convertidos em ferramentas, utensílios, armas, cortinas contra vento e até peças de roupa impermeável, como os famosos casacos feitos de tiras de intestino de animais marinhos.

Essa organização material reforça um ponto central do livro: no Mar de Bering, carne e gordura de origem animal não eram um “extra” da dieta, mas o núcleo da segurança alimentar e da infraestrutura básica.

4. Morsa, baleia e caribu: pilares da subsistência e alvos da exploração externa

Hunt dedica parte importante da obra à morsa (walrus), destacando como esses animais eram vitais para vários povos costeiros.

Para os nativos, a morsa era:

  • Fonte de carne e gordura para alimentação.
  • Fornecedora de pele grossa para abrigos, cordas e utensílios.
  • Origem de marfim (presas), usado em ferramentas e, mais tarde, transformado em artefatos de valor para comércio.

Com a entrada em cena de caçadores e baleeiros europeus e americanos, o foco mudou:

  • Baleeiros e caçadores brancos frequentemente abatiam grandes rebanhos de morsas buscando principalmente óleo e marfim, descartando a carne e o couro no gelo após retirar apenas o toucinho.
  • Estimativas citadas no livro indicam que cerca de 85 mil morsas foram mortas entre 1869 e 1874, e algo entre dois e três milhões ao longo de um século, com enorme desperdício de alimento que poderia sustentar populações humanas inteiras.

Hunt reproduz o relato do capitão Frederick A. Barker, que sobreviveu com seu grupo graças à ingestão de carne crua e gordura de morsa, geralmente “bem passada” pelo tempo, fornecida por nativos. Ele relata que inicialmente resistiu a comer, jejuando por três dias, mas acabou reconhecendo que aquela comida o mantinha vivo em condições extremas. Ao mesmo tempo, percebeu que estava literalmente “tirando o pão da boca” dos habitantes locais, que já passavam fome após a redução drástica das morsas pela caça comercial.

Em carta à imprensa marítima, Barker advertiu que a destruição das morsas “terminaria na exterminação dessa raça de nativos, que dependem desses animais sozinhos para o suprimento de comida no inverno”.

Situação semelhante é descrita para outras espécies:

  • Baleias: por “tempo imemorial”, muitas comunidades viviam de baleias, focas, morsas, peixes e aves aquáticas; com a caça industrial, milhares de baleias foram abatidas e empurradas para regiões inalcançáveis, rompendo uma cadeia alimentar antiga.
  • Caribu (renas selvagens): era um componente importante da alimentação de grupos do interior. A chegada de armas de fogo modernas aumentou a eficiência da caça, ao mesmo tempo em que a demanda extra de carne pelos navios de caça intensificou a pressão sobre os rebanhos, contribuindo para sua escassez em várias áreas.

Como resposta parcial à crise de alimentos, o governo americano apoiou um projeto de introdução de renas domésticas (reindeer) vindas da Sibéria para o Alasca, com a intenção explícita de criar uma nova fonte sustentável de carne e transporte para os nativos.

5. Quando a carne tradicional é trocada por enlatados

Um dos pontos mais delicados abordados por Hunt é a substituição, ao longo do tempo, dos alimentos tradicionais de origem animal por produtos industriais trazidos pelos brancos.

Na fase de arrendamento comercial das ilhas de focas, o contrato permitia que alguns filhotes de foca fossem abatidos para alimentação dos Aleutas. Representantes do governo discutiam se isso deveria ser proibido e substituído por carne enlatada e leite condensado. Alguns agentes defendiam que não fazia sentido alimentar os Aleutas com carne salgada enlatada durante todo o inverno se eles não tinham acesso a vegetais ou outros alimentos “antiescorbúticos”, reconhecendo o risco de deficiência nutricional.

Com o passar dos anos:

  • Os Aleutas “passaram a desprezar” a carne de foca.
  • A dependência de “comida de branco” aumentou.
  • Hunt relata que, como resultado, houve declínio físico documentado entre esses povos.

Após a evacuação durante a Segunda Guerra Mundial, um médico que avaliou os Aleutas em 1946 descreveu que quase todos eram de baixa estatura e incapazes de realizar trabalho manual pesado, atribuindo essa condição ao fato de “não comerem o suficiente, nem o tipo certo de alimento”. O mesmo relatório menciona que não havia carne fresca suficiente disponível e que metade da população evitava carne de foca, enquanto a ração oficial era de apenas 1.700 kcal por pessoa, valor considerado insuficiente até em comparação com prisioneiros de guerra alemães.

Em 1942, outro médico já havia descrito a dieta como “absolutamente inadequada”, com alta incidência de furúnculos e infecções, e relatou que crianças até dois anos recebiam apenas leite em condições muito restritas.

Esses registros mostram, com base em observações clínicas da época, que a substituição parcial dos alimentos animais tradicionais por enlatados e rações padronizadas, sem equivalência em qualidade e quantidade, teve impacto negativo direto na saúde e na robustez física dessas comunidades.

6. Alimentos de origem animal como eixo da vida no Mar de Bering

Ao focar nos alimentos de origem animal em Arctic Passage, o quadro que se forma é claro e concreto:

  • Peixes, baleias, focas, morsas, caribus e renas não eram apenas “itens de menu”, mas o eixo da economia, da cultura material e da sobrevivência.
  • A perda desses recursos, ou sua substituição por alimentos industrializados inadequados, aparece na narrativa associada à fome, doenças, perda de capacidade de trabalho e fragilidade física descrita por médicos e observadores.
  • Quando projetos governamentais tentaram recompor fontes de carne (como a introdução de renas), a motivação explicitada nos documentos era justamente a de restaurar uma base de alimentos de origem animal que pudesse garantir subsistência estável às populações nativas.

A história reconstruída por Hunt não é apresentada como tese nutricional moderna, mas como uma sequência de fatos históricos, relatos médicos e testemunhos de sobreviventes. Ao se olhar para esses registros com atenção, fica evidente que, no contexto do Mar de Bering entre 1697 e 1975, alimentos de origem animal foram o centro de gravidade da vida humana — e que as intervenções externas que afetaram o acesso a esses alimentos tiveram consequências profundas e documentadas para a saúde e a sobrevivência dos povos locais.

Fonte: https://amzn.to/3T6hLi6

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