Mente sobre milkshakes: estados mentais, não apenas nutrientes, determinam a resposta da grelina


1. Ideia central do estudo

O artigo de Crum e colaboradores investiga se o corpo responde à comida apenas pelos nutrientes que entram no estômago ou também pelo que a pessoa acredita que está comendo. Em vez de olhar só para calorias, gordura e açúcar, os autores testaram se o estado mental ao encarar um alimento muda a resposta de um hormônio ligado à fome, a grelina.

O resultado principal é simples de resumir: mesmo tomando o mesmo milkshake, as pessoas tiveram respostas hormonais diferentes dependendo se acreditavam estar bebendo algo “indulgente” e calórico ou “sensato” e pouco calórico.

2. O que é a grelina, em termos simples

A grelina é um hormônio produzido principalmente no estômago. Ela funciona, de forma simplificada, como um sinal de fome:

  • Quando o estômago está vazio ou a ingestão de energia é baixa, a grelina sobe, enviando ao cérebro a mensagem de que é hora de comer.
  • Quando a pessoa come e os nutrientes chegam ao trato gastrointestinal, a grelina cai, sinalizando saciedade.

Em condições normais, esse sobe-e-desce acompanha a ingestão de calorias e ajuda a manter o equilíbrio energético. Alterações nesse sistema estão ligadas a ganho de peso e obesidade.

3. Como o experimento foi feito

3.1. Quem participou

  • 46 adultos entre 18 e 35 anos.
  • Faixa de peso: de normal a sobrepeso (IMC médio 22,5 kg/m²).
  • Excluídos: gestantes, pessoas com diabetes, doenças crônicas importantes ou alergia a lactose/ovos.

Todos foram ao centro de pesquisa em duas manhãs, separadas por uma semana, sempre em jejum após a noite.

3.2. O “truque” dos milkshakes

Em cada visita, a pessoa bebia um milkshake. O detalhe é que, na prática, os dois shakes eram idênticos: cada um tinha 380 kcal, com a mesma composição.

O que mudava era apenas o rótulo apresentado:



Em uma sessão, o rótulo mostrava um shake “Indulgente”, com:
  • 620 kcal,
  • alto teor de gordura e açúcar,
  • linguagem visual que sugeria “prazer, decadência, recompensa”.

Na outra sessão, o rótulo mostrava o “Sensi-shake”, com:
  • 140 kcal,
  • baixo teor de gordura,
  • foco em “leve”, “magro”, “sem culpa”.

As imagens dos rótulos reforçam bem essa diferença de mensagem: um design mais “guloso” para o indulgente e outro mais “saudável” e “light” para o sensi-shake.

Metade dos participantes recebeu primeiro o rótulo “indulgente” e depois o “sensato”, e a outra metade na ordem inversa, para evitar viés de ordem.

3.3. O que foi medido

Em cada visita, os pesquisadores:

  • Colocavam um cateter para coletar sangue em três momentos:

    • 20 minutos (linha de base),
    • 60 minutos (fase de antecipação, após ver o rótulo),
    • 90 minutos (após tomar o milkshake).
  • Pediam que, entre 20 e 60 minutos, o participante apenas visse e avaliasse o rótulo.
  • Entre 60 e 90 minutos, a pessoa bebia o shake (em até 10 minutos) e avaliava sabor, aparência, prazer e sensação de saúde.

Além disso, todos responderam um questionário sobre restrição alimentar (Dutch Eating Behavior Questionnaire), para avaliar se costumavam “segurar” a alimentação de forma mais rígida.

4. O que as pessoas acharam dos shakes

Do ponto de vista subjetivo:

  • O sensi-shake foi visto como bem mais saudável que o shake indulgente, como mostra o gráfico da Figura 3 (página 4), que exibe diferença clara na nota de “saudabilidade” entre os rótulos.
  • Em relação a sabor, não houve diferença estatisticamente relevante entre os dois rótulos.

Ou seja, mudar a imagem e a descrição do produto foi suficiente para alterar a percepção de “saudável” versus “indulgente”, sem mudar o gosto real.

5. Como a grelina respondeu aos diferentes estados mentais

Aqui está o núcleo do estudo.

Quando o milkshake era apresentado como indulgente e calórico:

  • A grelina subia um pouco na fase de antecipação.
  • Depois de beber, a grelina caía de forma acentuada, como se o corpo tivesse recebido uma refeição mais “pesada” e suficiente.

Quando o mesmo milkshake era apresentado como sensato e pouco calórico:

  • A curva de grelina ficava muito mais “flat”, com pouca redução após o consumo.
  • Em alguns casos, a grelina até aumentava levemente ao longo do tempo.


O gráfico da Figura 4 (página 5) ilustra bem esse padrão:

  • A linha do shake indulgente desce de forma evidente após o consumo.
  • A linha do sensi-shake se mantém quase reta.

Do ponto de vista estatístico, houve um efeito significativo da interação entre tipo de rótulo e tempo, com padrão em curva (quadrático), mostrando que a diferença principal aparece na comparação antecipação versus pós-consumo.

Importante:

  • O padrão se manteve mesmo ajustando o peso corporal nas análises.
  • O grau de “restrição alimentar” não modificou de forma significativa essa resposta hormonal no contexto deste estudo.
  • As notas subjetivas de fome não diferiram de maneira marcante entre as condições, o que sugere que o hormônio mudou mais claramente que a sensação relatada.

Em resumo: o corpo “se comportou” como se o shake indulgente fosse, de fato, mais calórico e saciante, mesmo sendo idêntico ao sensi-shake em calorias e nutrientes.

6. O que isso significa na prática

Com base nos resultados, os autores concluem que:

  • A resposta da grelina não depende apenas do que entra fisicamente no estômago.
  • O significado atribuído ao alimento – “isso é pesado e satisfatório” versus “isso é leve e diet” – modula a resposta hormonal de saciedade.
  • Rótulos, propagandas e mensagens de “produto saudável” podem influenciar não só o quanto uma pessoa acha que comeu, mas também a forma como o corpo sinaliza fome e saciedade.

O artigo ressalta que este foi um estudo pontual, em ambiente controlado, com uma única refeição. Ele não avaliou:

  • consumo alimentar ao longo do dia;
  • mudanças de peso em longo prazo;
  • impacto em doenças metabólicas.

Mesmo assim, os autores sugerem que:

  • Estados mentais de “sensatez” rígida ao comer podem levar a um perfil de grelina menos suprimida, o que poderia, em teoria, tornar a manutenção de peso mais difícil, por aumentar apetite e reduzir gasto energético.
  • Por outro lado, abordar alimentos saudáveis com um estado mental de indulgência (considerando-os prazerosos e satisfatórios) poderia, potencialmente, favorecer uma resposta de saciedade mais robusta.

Essas hipóteses são levantadas no texto, mas os próprios autores indicam que são necessárias pesquisas futuras para verificar efeitos em longo prazo, em situações mais próximas do cotidiano.

7. Mensagens-chave

A partir do que o estudo mostrou, podem ser destacados alguns pontos práticos, sempre dentro dos limites da evidência disponível:

  • O corpo não reage somente às calorias reais; ele também responde ao que a pessoa acredita estar comendo.
  • Um mesmo alimento pode gerar respostas hormonais diferentes dependendo se é visto como “proibido e calórico” ou “leve e diet”.
  • Rótulos e mensagens de marketing que enfatizam apenas “leve”, “sem culpa”, “baixo em calorias” podem ter efeitos inesperados sobre saciedade hormonal.
  • A forma como se pensa sobre a comida – o estado mental – é um elemento real da fisiologia, não apenas um detalhe psicológico.

O estudo de Crum e colegas, publicado na revista Health Psychology, destaca que mente e corpo estão interligados de maneira mensurável, via hormônios como a grelina, quando o assunto é alimentação.

Fonte: https://doi.org/10.1037/a0023467

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