A nutrição está associada a comportamentos violentos e criminosos


O artigo de Asil e Erkmen, publicado na revista Current Nutrition Reports, é uma revisão narrativa que discute como a alimentação pode influenciar o humor, a saúde mental e, indiretamente, o risco de comportamentos violentos e criminosos. As autoras reúnem 45 estudos publicados entre 2000 e 2024 em bases como Scopus, Web of Science, PubMed e Google Scholar.

A ideia central é que uma alimentação pobre em macro e micronutrientes, somada a padrões alimentares “ocidentais” (muito açúcar, farinha refinada e gordura saturada, pouca fibra e alimentos in natura), está associada a:

  • pior humor;
  • mais sintomas de depressão e ansiedade;
  • maior agressividade, impulsividade e problemas de autocontrole;
  • maior risco de comportamentos antissociais e criminais.

Por outro lado, uma alimentação mais equilibrada, rica em nutrientes, parece contribuir para:

  • melhor funcionamento cerebral;
  • melhor regulação emocional;
  • redução de comportamentos agressivos e de quebra de regras, inclusive em populações de presídios.

Crime não é só “falta de caráter”: o papel da alimentação

O artigo começa lembrando que o crime é um comportamento humano complexo e intencional, que envolve violação de valores protegidos pela lei. As autoras destacam que as causas são múltiplas: fatores econômicos, familiares, ambientais, psicológicos, biológicos, desempenho escolar e inteligência.

Na figura em forma de círculo apresentada na página 2, os principais grupos de fatores que aumentam o risco de envolvimento em crime são:

  • Econômicos: pobreza, desemprego, estresse financeiro;
  • Sociológicos: influência de pares, normas sociais, comunidade;
  • Familiares: histórico familiar, estilo de criação, envolvimento dos pais;
  • Psicológicos: saúde mental, transtornos de personalidade, problemas de autocontrole;
  • Ambientais: vizinhança, condições de moradia;
  • Biológicos: predisposição genética e questões neurológicas;
  • Escolares: desempenho e engajamento na escola;
  • Inteligência: habilidades cognitivas e tomada de decisão.

Na figura da página 3, o artigo mostra que certos estados mentais e comportamentos – como depressão, ansiedade, esquizofrenia, transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH), agressividade, baixa satisfação com a vida, impulsividade e baixa autocontrole – aparecem com frequência em pessoas que cometem crimes.

A partir daí, as autoras argumentam que a alimentação interfere justamente em muitos desses pontos: humor, cognição, autocontrole, inflamação, funcionamento cerebral e microbiota intestinal.

Eixo intestino-cérebro: microbiota, nervo vago e inflamação

Um dos pontos centrais da revisão é o eixo intestino-cérebro (gut–brain axis), que é a comunicação bidirecional entre intestino e cérebro envolvendo sistema nervoso, imunológico e endócrino.

Microbiota intestinal

  • Dietas ricas em gordura e proteína tendem a favorecer um tipo de microbiota com predominância de Bacteroides;
  • Dietas ricas em carboidratos tendem a favorecer Prevotella.

O padrão “ocidental”, com pouca fibra e muito açúcar refinado, gordura saturada e adoçantes artificiais, pode prejudicar a barreira intestinal, alterar o muco que protege o intestino e gerar um microbioma menos saudável. Isso se relaciona a maior risco de depressão e outros transtornos mentais.

Estudos mostram que:

  • pessoas com depressão têm alterações importantes na microbiota;
  • quando a microbiota de pessoas deprimidas é transferida para animais, esses animais passam a apresentar comportamentos semelhantes à depressão.

Nervo vago

O nervo vago é um grande canal de comunicação entre intestino e cérebro. A microbiota estimula a liberação de citocinas inflamatórias que, por meio do nervo vago, afetam o sistema nervoso central.

  • Em pessoas com depressão, há aumento de marcadores inflamatórios no sangue e no líquor;
  • Estudos com estimulação do nervo vago mostram melhora de casos de depressão resistente a tratamento medicamentoso;
  • Em animais, a administração de determinados probióticos reduz ansiedade e esse efeito desaparece quando o nervo vago é cortado.

Inflamação e comportamento agressivo

O artigo destaca que marcadores inflamatórios elevados aparecem em:

  • pessoas com transtorno de personalidade antissocial;
  • pessoas com esquizofrenia que cometeram crimes;
  • indivíduos com transtorno explosivo intermitente e níveis altos de estresse oxidativo.

Padrões alimentares associados à inflamação (como dieta ocidental rica em gordura saturada e gorduras trans) tendem a piorar esse cenário, enquanto dietas como a mediterrânea, ricas em fibras, polifenóis, ômega-3 e ômega-6, parecem ter efeito anti-inflamatório.

Nutrientes específicos e comportamento

A Tabela 1 do artigo (página 6–7) resume vários nutrientes e alimentos ligados ao humor, ao controle emocional e a comportamentos de risco.

Carboidratos e índice glicêmico

  • Dietas com alto índice glicêmico e muitos carboidratos processados provocam picos e quedas rápidas de glicose, o que aumenta o risco de depressão, ansiedade, irritabilidade e mudanças de humor;
  • Hiperinsulinemia e oscilações de glicemia ativam hormônios como adrenalina, cortisol e glucagon, que podem gerar sensação de nervosismo, fadiga e piora do comportamento.

Estudos em mulheres mostram associação entre:

  • maior consumo de açúcar adicionado, sacarose e grãos refinados → maior risco de depressão;
  • maior consumo de frutas, vegetais, fibras e grãos integrais → menor risco de depressão.

Proteínas, triptofano e carne

O aminoácido triptofano é o precursor da serotonina, importante na regulação do humor e da impulsividade. Ele compete com outros aminoácidos grandes (LNAA) para entrar no cérebro.

  • Dietas com maior proporção de triptofano em relação a outros LNAA aumentam a entrada de triptofano no cérebro e melhoram o humor;
  • Estudos mostram que baixa ingestão de carne vermelha e padrões vegetarianos/veganos se associaram, em determinados grupos, a maior risco de sintomas depressivos e ansiosos, quando comparados a consumidores de carne.

O efeito não é apresentado como “culpa” de um único alimento, mas como possível impacto da menor ingestão de triptofano e outros nutrientes, dependendo do contexto da dieta como um todo.

Gorduras e ômega-3

Ômega-3 (especialmente EPA e DHA) participa da estrutura dos neurônios, modula neurotransmissores e tem ações anti-inflamatórias.

O artigo resume vários achados:

  • Suplementação de ômega-3 em adultos reduziu raiva e ansiedade;
  • Meta-análises indicam que ômega-3 pode ser uma estratégia de baixo custo para reduzir agressividade em crianças e adultos;
  • Em presídios, indivíduos com menor índice de ômega-3 apresentavam mais comportamentos agressivos e déficit de atenção;
  • Em crianças, suplementação com ômega-3 reduziu problemas de comportamento, com efeito que persistiu meses após o fim da intervenção.

Além disso, há estudo sugerindo que níveis de colesterol podem modular o efeito de experiências traumáticas na tendência à violência, via alterações na atividade serotoninérgica.

Fibras e crosstalk intestinal

Fibras insolúveis chegam ao cólon e são fermentadas pela microbiota, produzindo ácidos graxos de cadeia curta que estimulam hormônios intestinais como CCK e GLP-1. Esses hormônios, por sua vez, fazem parte de um “diálogo” (crosstalk) entre intestino e cérebro que influencia humor e comportamento e passa a ser alvo em pesquisas sobre ansiedade e depressão.

Vitaminas e minerais

A revisão destaca:

  • Deficiência de folato está associada a maior prevalência e gravidade de depressão e a menor resposta a antidepressivos;
  • Vitaminas do complexo B, vitamina C, vitamina D e zinco são essenciais para o equilíbrio de neurotransmissores que regulam o humor;
  • Em uma prisão na Holanda, suplementos contendo vitaminas, minerais e ácidos graxos essenciais reduziram significativamente agressões e violações de regras; outro estudo em presos jovens mostrou redução de comportamento antissocial e violento com suplementação similar.

Água, cafeína, álcool, especiarias e probióticos

Hidratação e cafeína

  • Ingestão insuficiente de água está ligada a pior humor, mais ansiedade, tensão e irritabilidade;
  • Cafeína, em doses moderadas, melhora estado de alerta, desempenho e pode estar associada a menor risco de depressão;
  • Em atletas, a cafeína reduziu tensão matinal e melhorou desempenho;
  • Doses altas podem provocar irritabilidade, ansiedade e insônia, por isso o artigo recomenda limite em torno de 300 mg/dia.

Álcool

O artigo reforça que o consumo excessivo de álcool:

  • aumenta o risco de agressões, violência sexual, furtos, acidentes de trânsito e outros crimes;
  • tem grande impacto em custos econômicos e em saúde pública.

Alimentos picantes e capsaicina

Estudos associam maior consumo de alimentos muito picantes e pimenta vermelha a traços como:

  • busca de recompensa;
  • sensação de excitação;
  • comportamentos de dominância social e agressividade;
  • tendência a buscar novidades e riscos.

Essas associações podem envolver hormônios como testosterona e neurotransmissores como dopamina e serotonina.

Probióticos e prebióticos

A revisão cita trabalhos em que:

  • misturas de Lactobacillus e Bifidobacterium reduziram sofrimento psicológico;
  • consumo diário de bebida láctea com probiótico melhorou humor em indivíduos inicialmente deprimidos;
  • mudanças de dieta ao longo da vida são uma forma de modular a diversidade e a função da microbiota, com impacto potencial em depressão e ansiedade.

Infância, inteligência e risco futuro de crime

A Tabela 2 (página 9) discute como alimentação na infância se conecta com inteligência, autocontrole e comportamento antissocial.

Principais pontos:

  • Desnutrição precoce prejudica o desenvolvimento cerebral e está associada a TDAH, agressividade e comportamento antissocial;
  • Estudos com gêmeos mostram que nutrição de baixa qualidade na pré-escola aumenta o risco de comportamento antissocial na idade escolar, mesmo após considerar fatores genéticos e ambientais;
  • Crianças com desnutrição precoce apresentam mais problemas de autocontrole e agressão contra colegas;
  • Pular café da manhã, ter hábitos alimentares ruins e baixa ingestão de zinco e ferro se associam a queda de QI e pior desempenho escolar;
  • Estudos com suplementação de ferro e zinco em crianças mostram aumento de QI e melhora do apetite e do estado nutricional.

Como baixos níveis de QI e dificuldades escolares aumentam o risco de comportamento agressivo e criminal no futuro, o artigo sugere que cuidar da alimentação na infância é também uma forma de prevenção indireta do crime.

Serotonina, glicemia, obesidade e autocontrole

Serotonina

Níveis baixos de serotonina estão ligados a:

  • comportamentos antissociais;
  • violência e agressividade;
  • impulsividade;
  • depressão e risco de suicídio.

Intervenções com inibidores seletivos da recaptação de serotonina (ISRS) em pessoas com histórico de crime violento mostraram redução de impulsividade, raiva, agressão e sintomas depressivos. Por outro lado, alguns estudos populacionais sugerem aumento de risco de crime violento durante e logo após o uso de ISRS em determinados grupos etários, mostrando que a relação é complexa.

O artigo menciona que ajustar a dieta para aumentar a entrada de triptofano no cérebro – por exemplo, refeições com maior relação carboidrato/proteína – pode elevar a produção de serotonina e influenciar a tomada de decisão, reduzindo comportamento de risco.

Glicose e agressividade

A capacidade de autocontrole exige energia, e parte dessa energia vem da glicose.

  • Estudos com casais mostram que níveis mais baixos de glicose ao final do dia se associam a maior agressividade nas interações;
  • Casos clínicos descritos indicam que hipoglicemia em pessoas com diabetes pode levar a comportamentos violentos ou inadequados, inclusive crimes, em indivíduos que não tinham histórico anterior de violência, justamente pela perda aguda de julgamento e de controle.

Obesidade

O artigo discute obesidade em duas dimensões:

  • Impactos sociais e econômicos:

    • menos participação produtiva no mercado de trabalho;
    • menores ganhos financeiros;
    • pior construção de “capital pessoal”.
    • Esses fatores podem, indiretamente, aumentar incentivos para o crime em alguns contextos.
  • Impactos psicológicos:
    • obesidade e transtorno de compulsão alimentar podem estar ligados a mais raiva, hostilidade e traços de personalidade limítrofe;
    • obesidade está associada a baixa autoestima e pior atitude em relação a si mesmo, o que também aparece como um dos fatores ligados a comportamento desviante.

Intervenções dietéticas que reduzem gordura corporal e melhoram o padrão alimentar foram associadas a melhora de medidas antropométricas, melhor autoimagem e menores níveis de depressão em pessoas com sobrepeso e obesidade.

Conclusões

De forma geral, a revisão conclui que:

  • Deficiências de macro e micronutrientes, desnutrição na infância e padrões de alimentação pouco saudáveis afetam não apenas a saúde física, mas também a saúde mental, o humor, o autocontrole e o comportamento;
  • Esses efeitos podem, em conjunto com outros fatores sociais, psicológicos e econômicos, aumentar o risco de comportamentos violentos e criminosos;
  • Uma alimentação mais equilibrada, com quantidade adequada de energia, proteínas, gorduras de boa qualidade, vitaminas, minerais, fibras e água, parece contribuir para melhor humor, melhor função cognitiva e menos comportamentos agressivos e antissociais;
  • Em ambientes de maior risco, como presídios, a suplementação de nutrientes mostrou redução de agressividade e quebra de regras, sugerindo um potencial uso da nutrição como parte de estratégias de prevenção e manejo de violência;
  • As autoras defendem mais pesquisas para entender melhor quais intervenções nutricionais são mais eficazes e como integrá-las a políticas de saúde pública e segurança, sempre em abordagem multidisciplinar envolvendo nutricionistas, psicólogos, psiquiatras e outros profissionais.

Em síntese, o artigo não afirma que a alimentação “causa” crime de forma direta, mas mostra que ela é uma peça importante do quebra-cabeça que envolve cérebro, emoções, decisões e comportamento social. Cuidar da qualidade da dieta aparece como uma forma de promover não apenas saúde física, mas também equilíbrio emocional e, em última instância, contribuir para uma sociedade mais segura.


Fonte: https://doi.org/10.1007/s13668-025-00668-7

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