Dieta cetogênica e função tireoidiana: um delicado equilíbrio metabólico


1. Repensando “sua tireoide precisa de carboidratos”

A maioria das pessoas recebe uma explicação simplificada: ao reduzir carboidratos, a função da tireoide “cai”, e os carboidratos seriam essenciais para manter a tireoide saudável. Quando alguém adota uma dieta com poucos carboidratos e passa a sentir cansaço, frio, ansiedade, alterações de sono ou do ciclo menstrual, é muito fácil atribuir tudo exclusivamente à redução de carboidratos.

A literatura científica, porém, mostra um quadro mais complexo. A produção, conversão e ação dos hormônios tireoidianos são fortemente moduladas por:

  • organização circadiana (ciclo claro–escuro);
  • função mitocondrial;
  • estado nutricional (micronutrientes e energia total);
  • inflamação sistêmica, estresse oxidativo e doença de base.

Revisões recentes sobre nutrição e tireoide descrevem um eixo dieta–intestino–tireoide, no qual micronutrientes como iodo, selênio, ferro, zinco, cobre, magnésio, vitamina A e vitamina B12 atuam em múltiplas etapas da síntese, conversão e ação dos hormônios da tireoide.(MDPI)

Ao mesmo tempo, a sensibilidade à luz e à escuridão é crucial. O eixo hipotálamo–hipófise–tireoide é sincronizado com a exposição à luz do amanhecer, à luz do dia e à escuridão noturna. A melatonina, produzida à noite pela glândula pineal e também localmente em mitocôndrias, funciona como um potente antioxidante e regulador de função mitocondrial.(Wiley Online Library)

Estudos experimentais em tecido tireoidiano mostram que a melatonina reduz marcadores de dano oxidativo na glândula, protegendo membranas e estruturas celulares frente a agentes tóxicos e pró-oxidantes.(ScienceDirect) Isso é compatível com a ideia de que a integridade mitocondrial da tireoide depende tanto de sinais circadianos (luz/escuridão) quanto de nutrientes e do contexto metabólico.

Nesse cenário, os carboidratos são apenas um dos muitos sinais metabólicos que influenciam o eixo tireoidiano — não o “botão mestre” isolado que determina se a tireoide vai funcionar ou falhar.

2. Tireoide, mitocôndrias e estresse metabólico

Os hormônios tireoidianos exercem parte importante de seus efeitos justamente nas mitocôndrias, estimulando respiração, biogênese mitocondrial e utilização de substratos energéticos. Revisões recentes enfatizam que:

  • mitocôndrias são alvos centrais dos hormônios tireoidianos;
  • tanto o excesso quanto a deficiência hormonal podem desregular a função mitocondrial;
  • alterações mitocondriais participam da fisiopatologia de doenças da tireoide e de condições metabólicas associadas.(PMC)

Modelos experimentais e dados clínicos em estados hipertireoidianos (incluindo terapias de supressão de TSH) mostram aumento do consumo de oxigênio, maior produção de espécies reativas de oxigênio (ROS) e, em alguns contextos, redução da eficiência da fosforilação oxidativa, com dano estrutural a células e mitocôndrias.(informaticsjournals.co.in)

Em um organismo já sob estresse metabólico, forçar o sistema com doses elevadas de hormônio tireoidiano pode aumentar ainda mais o estresse oxidativo e a sobrecarga mitocondrial, em vez de restaurar a produção energética eficiente. Isso ajuda a entender por que a simples “correção” de T3 ou T4 no exame, sem considerar o contexto mitocondrial e inflamatório, nem sempre melhora sintomas — e, em alguns casos, pode piorá-los.

3. O que a tireoide realmente precisa em uma dieta cetogênica

A pergunta central é: existe evidência de que a tireoide “precisa” de uma certa quantidade de carboidratos para funcionar? A resposta, à luz da literatura atual, é mais nuançada.

3.1. O que mostram os estudos sobre carboidratos e hormônios tireoidianos

Estudos clássicos com dietas isocalóricas variando o teor de carboidratos em homens saudáveis mostraram:

  • redução de T3 e aumento de rT3 quando os carboidratos são severamente restringidos, mesmo com calorias totais mantidas;(PubMed)
  • respostas semelhantes (queda de T3) em contextos de restrição calórica crônica.(digitalcommons.wustl.edu)

Revisões narrativas recentes sobre dietas de baixa carga glicêmica concluem que a privação de carboidratos está associada a um padrão de “baixa T3” em vários estudos, mas enfatizam que:

  • os trabalhos são poucos;
  • os protocolos variam bastante (duração, grau de restrição, presença ou não de perda de peso);
  • há confusão importante com restrição energética e doenças de base.(PubMed)

Esse padrão é frequentemente interpretado como uma forma de adaptação metabólica (síndrome do “low T3” não tireoidiana) — uma resposta do organismo à redução de disponibilidade de glicose e/ou de energia, e não necessariamente como falência primária da glândula.

Até o momento, não há evidência robusta de que exista um “limiar obrigatório” de carboidratos na dieta, abaixo do qual a tireoide deixe inevitavelmente de funcionar em indivíduos com aporte energético adequado, micronutrientes suficientes e boa saúde geral. As alterações hormonais observadas parecem depender da combinação de:

  • balanço energético (déficit calórico vs. manutenção);
  • composição corporal e perda de peso;
  • inflamação crônica e doenças associadas;
  • estado de micronutrientes e do eixo intestino–tireoide.(MDPI)

3.2. Diet–gut–thyroid axis e micronutrientes

Uma revisão abrangente publicada em 2024 sobre nutrição e tireoide descreve de forma consistente o eixo dieta–intestino–tireoide.(MDPI) De acordo com essa síntese, a função tireoidiana ao longo da vida depende fortemente de:

  • iodo (componente estrutural dos hormônios);
  • selênio (enzimas deiodinases e defesa antioxidante);
  • ferro e zinco (síntese e metabolismo de hormônios);
  • cobre, magnésio, vitamina A e vitamina B12 (regulação da síntese, conversão e ação hormonal).(PubMed)

O ponto central para uma dieta cetogênica bem formulada não é a presença obrigatória de carboidratos, mas sim:

  • assegurar ingestão suficiente desses micronutrientes;
  • evitar restrição calórica crônica não intencional;
  • garantir proteína adequada;
  • manter boa qualidade do sono, exposição regular à luz natural e escuridão à noite;
  • reduzir estresse crônico e inflamação sistêmica.

Uma dieta cetogênica estruturada com alimentos densos em nutrientes (por exemplo, ovos, carnes, peixes, vísceras, laticínios conforme tolerância e diretrizes individuais) pode fornecer iodo, selênio, ferro, zinco, vitamina A e B12 de forma consistente, desde que planejada de forma criteriosa e acompanhada profissionalmente.(MDPI)

3.3. O que dizem as revisões sobre dieta cetogênica e tireoide

O artigo de revisão “Ketogenic Diet and Thyroid Function: A Delicate Metabolic Balancing Act”, de Vranjić et al., sintetiza a literatura disponível especificamente sobre dieta cetogênica e função tireoidiana.(MDPI) Os autores observam que:

  • dietas cetogênicas frequentemente se associam a reduções modestas de T3 com T4 e TSH preservados ou com mudanças discretas;
  • ao mesmo tempo, há melhora de marcadores metabólicos (sensibilidade à insulina, peso, inflamação) em vários estudos;
  • os dados ainda são limitados, heterogêneos e, em grande parte, observacionais ou de curto prazo.

A hipótese proposta é que, em contexto de cetose nutricional bem estruturada, parte da queda de T3 pode refletir melhor eficiência e sensibilidade aos hormônios tireoidianos, e não necessariamente hipotireoidismo clínico.

Os próprios autores, contudo, enfatizam que a evidência é inicial, que faltam ensaios clínicos de longo prazo e que a interpretação dos exames deve ser sempre feita em conjunto com o quadro clínico do paciente.

4. Sintomas ao reduzir carboidratos: sempre culpa da tireoide?

Quando um indivíduo reduz carboidratos e passa a sentir fadiga, extremidades frias, insônia, ansiedade ou palpitações, é comum concluir que “a tireoide descompensou”. A literatura, porém, sugere vários outros mecanismos relevantes:

  • alterações rápidas de sódio, potássio e volume plasmático, especialmente em dietas cetogênicas sem protocolo adequado de eletrólitos, podem causar fadiga, tontura, palpitações e sensação de “nervosismo”;(neex2025.com.br)
  • restrição energética não intencional (comer pouco demais ao reduzir carboidratos) pode induzir a mesma queda adaptativa de T3 descrita em dietas hipocalóricas clássicas;(digitalcommons.wustl.edu)
  • desorganização circadiana (pouca luz natural de manhã, uso intenso de telas à noite, sono fragmentado) altera a secreção de melatonina e cortisol, favorecendo sintomas de hiperativação do sistema nervoso, ansiedade e dificuldade para dormir.(Nature)

Em muitos casos, esses sintomas revelam um organismo que já estava sob estresse metabólico e circadiano importante antes da mudança alimentar, e que perdeu temporariamente a capacidade de se adaptar de forma suave à nova demanda metabólica.

Carboidratos em maior quantidade à noite podem, em algumas pessoas vulneráveis ao estresse, atenuar agudamente o cortisol e modular neurotransmissores (por exemplo, serotonina), trazendo alívio sintomático momentâneo. Entretanto, esse efeito compensatório imediato não significa que os carboidratos sejam o único caminho estável de longo prazo para restaurar a saúde da tireoide e do cérebro.

5. Quando a dieta cetogênica pode favorecer a saúde tireoidiana

5.1. Mitochôndrias, inflamação e autoimunidade

A revisão de Vranjić et al. destaca que a dieta cetogênica, ao reduzir a disponibilidade de glicose e alterar o estado redox, modula vias metabólicas ligadas à inflamação e à função mitocondrial em diferentes tecidos, incluindo a tireoide.(MDPI)

Ao mesmo tempo, estudos recentes mostram que doenças tireoidianas autoimunes, como a tireoidite de Hashimoto, estão frequentemente associadas a:

  • disfunção mitocondrial;
  • menor disponibilidade de micronutrientes;
  • alterações do microbioma intestinal;
  • distúrbios na utilização de carboidratos e ácidos graxos.(Nature)

Nesse contexto, cetonas como o beta-hidroxibutirato (BHB) exercem efeitos imunometabólicos relevantes. Revisões e estudos experimentais indicam que o BHB pode:

  • melhorar a eficiência mitocondrial e o equilíbrio redox;
  • favorecer a função de células T reguladoras (Treg);
  • reduzir a atividade de vias inflamatórias associadas a células Th17 em determinadas condições.(PMC)

Esses efeitos são descritos principalmente em modelos experimentais e estudos iniciais em humanos, e ainda não configuram uma recomendação de rotina para doenças autoimunes da tireoide. Mas apontam para um mecanismo plausível: em alguns cenários, a cetose nutricional pode reduzir a carga inflamatória e oxidativa sobre a glândula, especialmente quando associada a correção de micronutrientes e melhora da função mitocondrial.

5.2. Dieta cetogênica e câncer de tireoide: dados pré-clínicos

No campo oncológico, estudos em modelos animais de carcinoma anaplásico de tireoide mostraram que:

  • a combinação de dieta cetogênica ou restrição de glicose com antioxidantes (como N-acetilcisteína) reduziu o crescimento tumoral em camundongos;(PubMed)
  • a associação de dieta cetogênica com inibidores da glicólise (por exemplo, 3-bromopiruvato) diminuiu volume tumoral e aumentou a sobrevida em modelos murinos.(Frontiers)

Esses resultados são pré-clínicos e não equivalem a uma terapia padrão para câncer de tireoide em humanos. Contudo, sugerem que, em tumores fortemente dependentes de glicose, intervenções metabólicas como a dieta cetogênica podem, no futuro, se tornar adjuvantes promissores, sempre em associação com tratamentos oncológicos convencionais.

6. Dieta cetogênica, saúde mental e receio em relação à tireoide

Este tema é particularmente sensível para pessoas com transtornos psiquiátricos graves que consideram a dieta cetogênica como terapia metabólica complementar. Nos últimos anos, diversos trabalhos vêm investigando esse uso:

  • um estudo piloto de 4 meses em indivíduos com esquizofrenia ou transtorno bipolar mostrou melhora relevante de parâmetros metabólicos e redução da gravidade psiquiátrica com dieta cetogênica adjunta, em comparação à linha de base;(PubMed)
  • revisões recentes sobre “ketogenic metabolic therapy” descrevem benefícios potenciais em sintomas de depressão, ansiedade, transtorno bipolar e esquizofrenia, embora reforcem que ainda faltam ensaios clínicos randomizados de maior escala e duração.(PMC)

Esses dados indicam que a dieta cetogênica, quando bem planejada e monitorada, pode ser uma opção terapêutica promissora para algumas pessoas com doença mental grave, especialmente em casos de refratariedade ou efeitos colaterais metabólicos significativos de medicações.

À luz da literatura atual, o receio de que “a tireoide vai parar de funcionar sem carboidratos” não é sustentado por evidência robusta, desde que:

  • a intervenção seja realizada com aporte energético adequado;
  • micronutrientes e proteína sejam monitorados;
  • sono, luz natural, escuridão noturna e manejo do estresse sejam considerados parte do protocolo;
  • exames de função tireoidiana sejam acompanhados por profissionais experientes, que conheçam as adaptações hormonais típicas de dietas de baixo carboidrato.

7. A recuperação psiquiátrica é maior do que os mitos sobre tireoide

A síntese dos dados atuais permite algumas conclusões importantes, baseadas em evidência:

  1. A função tireoidiana é multifatorial. Ela responde de forma integrada a luz e escuridão, função mitocondrial, estado inflamatório, micronutrientes, energia total e composição corporal — não a um único macronutriente isolado.(MDPI)
  2. Carboidratos influenciam T3, mas não são o único determinante da saúde tireoidiana. Estudos mostram queda de T3 com restrição severa de carboidratos, especialmente quando há restrição calórica ou perda de peso. Entretanto, as evidências disponíveis não demonstram que uma razão fixa de carboidratos seja necessária para manter a função tireoidiana normal em todos os indivíduos.(PubMed)
  3. Dietas cetogênicas bem formuladas podem reduzir T3 sem configurar hipotireoidismo clínico. A revisão de Vranjić et al. interpreta essa queda como provável adaptação metabólica, possivelmente relacionada a maior eficiência e sensibilidade aos hormônios tireoidianos, em paralelo a melhora de parâmetros cardiometabólicos. Essa hipótese ainda precisa de confirmação em estudos de longo prazo.(MDPI)
  4. Micronutrientes e eixo dieta–intestino–tireoide são alvos centrais de cuidado. A literatura é consistente ao mostrar que iodo, selênio, ferro, zinco, cobre, magnésio, vitamina A e B12, além de um microbioma equilibrado, são determinantes para a saúde tireoidiana, independentemente de a dieta ter mais ou menos carboidratos.(MDPI)
  5. Para pessoas com transtornos mentais graves, a decisão de usar ou não uma dieta cetogênica não deve se basear em mitos. Estudos piloto e revisões em psiquiatria metabólica mostram que a dieta cetogênica é uma estratégia promissora, desde que conduzida em equipe multiprofissional, com monitorização clínica, metabólica e, idealmente, tireoidiana.(PubMed)

Em resumo, as evidências disponíveis não apoiam a ideia de que a tireoide dependa de uma quantidade mínima fixa de carboidratos para funcionar, desde que o indivíduo:

  • receba energia suficiente;
  • tenha adequada ingestão de micronutrientes essenciais;
  • mantenha boa higiene de sono e exposição à luz;
  • reduza sobrecarga inflamatória e estresse crônico;
  • seja acompanhado por profissionais que conheçam as adaptações hormonais associadas a dietas com baixo teor de carboidratos.

Para aqueles que, em conjunto com sua equipe de saúde, consideram a dieta cetogênica como parte de uma estratégia de recuperação psiquiátrica, o foco da decisão deve estar na qualidade da intervenção, no monitoramento e no contexto global de saúde — não em narrativas simplificadas de que “sem carboidrato a tireoide não funciona”.

Fonte: https://mentalhealthketo.com/2025/11/27/do-not-fear-for-your-thyroid-on-a-ketogenic-diet/

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