O artigo de Najdi e colaboradores, publicado na revista Nutrition Research Reviews, reúne o que as principais organizações internacionais dizem hoje sobre a ingestão de gordura em crianças do nascimento aos 3 anos de idade e mostra onde ainda existem dúvidas importantes. O texto analisa recomendações de órgãos como FAO/OMS, EFSA e ANSES, além de comparar leite materno, fórmulas infantis e outros tipos de leite usados nessa faixa etária.
A mensagem central é clara: para o bebê pequeno, a gordura não é detalhe. Ela é uma das principais fontes de energia, participa da formação do cérebro e da visão e ajuda no transporte de vitaminas essenciais. Ao mesmo tempo, nem todos os tipos de gordura têm o mesmo efeito, e ainda há muitas perguntas sem resposta sobre qual combinação seria realmente ideal.
Quanta gordura um bebê precisa?
Os dados reunidos no artigo mostram que, nos primeiros meses de vida, cerca de metade de toda a energia do lactente em aleitamento exclusivo vem da gordura do leite materno. Essa gordura sustenta o crescimento rápido, ajuda a formar tecidos novos e carrega vitaminas A, D, E e K.
Com base em revisões e pareceres técnicos, agências como a ANSES sugerem, de forma geral:
- abaixo de 6 meses: em torno de 50–55% da energia vinda de lipídios;
- de 6 meses a 3 anos: em torno de 45–50% da energia vinda de lipídios.
O artigo destaca que valores muito baixos de gordura, especialmente abaixo de 30% da energia total, aumentam o risco de ingestão insuficiente de energia e de vitaminas lipossolúveis nessa faixa etária. Assim, a ideia de “cortar gordura” na alimentação de bebês e crianças pequenas não encontra suporte nas evidências apresentadas.
Tipos de gordura
Gorduras poli-insaturadas (PUFA): equilíbrio entre ômega-6 e ômega-3
Os autores dão bastante atenção aos ácidos graxos essenciais, que o organismo não produz em quantidade suficiente e precisa obter pela alimentação:
- da família ômega-6, principalmente o ácido linoleico (LA) e o ácido araquidônico (ARA);
- da família ômega-3, o ácido alfa-linolênico (ALA), além de EPA e DHA.
Essas gorduras fazem parte das membranas das células, regulam processos inflamatórios e são fundamentais para o desenvolvimento neurológico e para a visão. Um ponto importante discutido no artigo é que LA (ômega-6) e ALA (ômega-3) usam as mesmas enzimas metabólicas. Quando o consumo de LA é muito elevado, há aumento de ARA e, ao mesmo tempo, redução da conversão de ALA em DHA e EPA. Isso pode diminuir a disponibilidade de DHA para o cérebro em desenvolvimento.
O texto também mostra que a composição dos PUFA no leite materno depende muito da alimentação e do estado metabólico da mãe. Dietas ricas em peixes ou com suplementação adequada de DHA aumentam o teor de DHA no leite, enquanto ingestão elevada de LA e obesidade materna podem alterar a proporção entre ômega-6 e ômega-3.
Gorduras monoinsaturadas (MUFA)
As gorduras monoinsaturadas, com destaque para o ácido oleico, estão presentes em diversos óleos e também no leite humano. Em adultos, substituições de gorduras saturadas por monoinsaturadas costumam melhorar alguns marcadores de perfil lipídico.
Para lactentes e crianças pequenas, o artigo ressalta que não há diretrizes específicas definindo faixas ideais de MUFA. Na prática, leite materno e fórmulas já contêm quantidades relevantes desses ácidos graxos, e as regulações atuais concentram-se mais em limitar um MUFA específico, o ácido erúcico, por motivos de segurança.
Gorduras saturadas
O leite humano contém grande quantidade de gorduras saturadas, sendo o ácido palmítico o principal representante. Essas gorduras são fonte densa de energia e participam da estrutura das membranas e da modificação de proteínas envolvidas em transporte e sinalização celular.
O artigo enfatiza que, para menores de 6 meses, não há base para recomendar diminuição de saturadas, já que o modelo de referência continua sendo o leite humano, naturalmente rico nesse tipo de gordura. Para 6 a 36 meses, agências como a ANSES sugerem apenas que o excesso de saturadas seja evitado, situando-as em torno de 12% da energia total.
Gorduras trans
O texto diferencia claramente dois tipos de gorduras trans: as naturais (presentes em pequena quantidade em leite e carne de ruminantes) e as industriais, formadas pela hidrogenação de óleos vegetais, muito mais problemáticas.
As gorduras trans industriais estão associadas a pior perfil lipídico em adultos e maior risco cardiovascular. Em estudos observacionais com mães e bebês, maior consumo de produtos ricos em trans se relaciona a maior adiposidade em alguns desfechos. Por isso, diretrizes internacionais recomendam manter o consumo de trans o mais baixo possível, em geral abaixo de 1–2% da energia total.
No contexto das fórmulas infantis, regulamentos europeus permitem apenas baixos teores de trans, inclusive para viabilizar o uso de gordura láctea, mantendo o valor dentro de limites considerados seguros.
Colesterol
O artigo descreve o colesterol como componente estrutural importante em membranas celulares e precursor de hormônios, com papel especial no desenvolvimento neurológico. O leite materno apresenta concentrações relativamente altas de colesterol, em torno de 90–150 mg/L, enquanto muitas fórmulas, especialmente as baseadas apenas em óleos vegetais, contêm pouco ou nenhum colesterol.
Revisões citadas no texto mostram que lactentes amamentados têm, em média, níveis mais altos de colesterol durante o período de aleitamento, mas alguns estudos de seguimento sugerem perfis lipídicos mais favoráveis e até menor risco cardiovascular em adultos que foram amamentados na infância. No entanto, os resultados não são consistentes entre todas as coortes, e há muitos fatores de confusão.
Por causa dessa incerteza, os autores explicam que ainda não há evidência robusta o suficiente para recomendar, de forma obrigatória, a adição de colesterol às fórmulas. As legislações atuais não exigem esse componente.
Leite materno e fórmulas: diferenças importantes
O artigo compara de forma sistemática a composição de lipídios do leite materno, do leite de vaca e de diferentes fórmulas. Em resumo:
- o leite humano apresenta combinação específica de saturadas, monoinsaturadas e poli-insaturadas, contém DHA, ARA, colesterol e grande diversidade de ácidos graxos;
- as fórmulas à base de óleos vegetais tendem a ter proporção mais alta de LA, composição de saturadas diferente e, em geral, ausência de colesterol; ARA e DHA podem ou não ser adicionados, dependendo do produto.
Os autores reforçam o leite materno como padrão de referência e avaliam em que medida as fórmulas atuais conseguem imitar esse padrão.
ARA e DHA nas fórmulas: discussão em aberto
Um dos pontos mais discutidos no artigo é a presença de ARA e DHA nas fórmulas. Na União Europeia, a inclusão de DHA tornou-se obrigatória em 2020 dentro de uma faixa mínima, enquanto o ARA permaneceu opcional. Essa decisão se apoiou em estudos que mostraram crescimento adequado com fórmulas contendo DHA, e benefícios visuais mais claramente atribuídos ao DHA.
Por outro lado, o texto destaca que:
- o leite humano contém, de modo geral, mais ARA do que DHA;
- a capacidade de produzir ARA a partir de LA é limitada e influenciada por variantes genéticas em genes como FADS;
- alguns estudos apontam melhores desfechos cognitivos e imunológicos quando ARA e DHA são oferecidos juntos em certas proporções, em comparação com fórmulas com DHA isolado.
Como os resultados são heterogêneos e dependem de vários fatores (genética, contexto alimentar, duração do aleitamento parcial etc.), os autores concluem que ainda são necessários ensaios clínicos maiores e mais bem controlados para definir se o ARA deveria ser obrigatório nas fórmulas e qual seria a melhor razão ARA:DHA.
Quando a forma da gordura também faz diferença
Além da quantidade e do tipo de gordura, o artigo chama atenção para a estrutura física dos lipídios.
Posição do ácido palmítico (sn-2)
No leite humano, a maior parte do ácido palmítico está ligada na posição central do triglicerídeo (sn-2). Durante a digestão, isso favorece a absorção e reduz a formação de “sabões de cálcio” no intestino, que podem endurecer as fezes.
Quando o palmítico é colocado em outras posições nos triglicerídeos, como em muitos óleos vegetais não modificados, aumenta a tendência de formar esses compostos com cálcio. Ensaios com fórmulas enriquecidas em palmítico na posição sn-2 mostraram:
- menor formação de sabões de cálcio nas fezes;
- fezes mais macias;
- alterações favoráveis na microbiota intestinal;
- em alguns estudos, melhores escores de desenvolvimento motor em seguimentos até 16 meses.
O artigo observa que essa configuração pode ser alcançada por reestruturação de óleos ou uso de gordura láctea, mas ainda não existe recomendação regulatória específica sobre níveis mínimos de palmitato em sn-2.
Membrana do glóbulo de gordura do leite (MFGM) e tamanho das gotículas
Outro aspecto abordado é a membrana do glóbulo de gordura do leite (MFGM), rica em fosfolipídeos, glicoesfingolipídeos, colesterol e proteínas específicas. No leite humano, a gordura está organizada em glóbulos maiores, recobertos por essa membrana. Nas fórmulas tradicionais, as gotículas de gordura são muito menores e estabilizadas por proteínas e emulsificantes.
Estudos em animais citados no artigo sugerem que dietas contendo glóbulos maiores e recobertos por fosfolipídeos, de forma semelhante ao leite humano, podem resultar em menor acúmulo de tecido adiposo e melhor sensibilidade à insulina na vida adulta. Ensaios clínicos em lactentes com fórmulas enriquecidas em componentes de MFGM apontaram, em alguns desfechos:
- melhor desempenho em testes cognitivos;
- menor frequência de certas infecções;
- crescimento semelhante ao obtido com fórmulas padrão.
Mesmo assim, os autores classificam esse campo como em desenvolvimento, ainda sem parâmetros formais para uso de MFGM em diretrizes oficiais.
O que já se sabe e o que continua em aberto
Ao final, o artigo organiza as principais conclusões em dois blocos: o que está relativamente bem estabelecido e o que permanece como lacuna de conhecimento.
Entre os pontos com maior consenso estão:
- a necessidade de alta proporção de gordura na alimentação de 0 a 3 anos, especialmente abaixo de 1 ano;
- o papel central dos PUFA, em particular LA, ALA, DHA e ARA;
- a recomendação de limitar gorduras trans, sobretudo as industriais;
- a manutenção de um aporte energético adequado de lipídios para garantir crescimento e ingestão de vitaminas.
Entre as questões em aberto, os autores destacam:
- a obrigatoriedade ou não de ARA nas fórmulas e a melhor proporção ARA:DHA;
- a necessidade (ou não) de adicionar colesterol às fórmulas;
- a definição de faixas ideais para saturadas e monoinsaturadas em diferentes idades dentro de 0 a 3 anos;
- o papel exato da posição do ácido palmítico, da MFGM e da estrutura das gotículas de gordura em desfechos de longo prazo, como risco de obesidade e saúde metabólica.
Com base no conjunto de evidências revisado, o texto reforça o leite humano como padrão de referência em composição de lipídios e indica que muito do esforço atual das fórmulas infantis é tentar se aproximar desse modelo. Ao mesmo tempo, sublinha que vários componentes específicos do leite humano ainda não foram plenamente traduzidos em recomendações normativas, abrindo espaço para novos estudos e revisões futuras.
