1. Por que ainda se fala tanto em gordura e coração?
O artigo explica que a doença cardiovascular ainda é a principal causa de morte no mundo. Mesmo com remédios para colesterol e pressão, muita coisa poderia ser evitada com mudanças no estilo de vida, especialmente na alimentação.
Durante décadas, a recomendação oficial foi mais ou menos assim:
- reduzir gordura saturada;
- aumentar gorduras “insaturadas” (monoinsaturadas – MUFA – e poli-insaturadas – PUFA).
Na prática, isso virou um discurso muito técnico, centrado em nutrientes, e pouco baseado em alimentos concretos. O editorial mostra que essa abordagem é limitada e que está na hora de falar menos em “tipo de gordura” e mais em quais alimentos as pessoas colocam no prato.
2. O que os estudos comparando MUFA e PUFA mostraram?
O editorial comenta uma grande análise que juntou 51 estudos clínicos comparando dietas:
- mais ricas em gorduras poli-insaturadas (PUFA);
- mais ricas em gorduras monoinsaturadas (MUFA).
Esses estudos avaliaram os principais exames de sangue ligados a risco cardiovascular:
- colesterol total;
- LDL-colesterol;
- HDL-colesterol;
- triglicerídeos.
De forma simplificada, a dieta mais rica em PUFA, em comparação com a mais rica em MUFA, levou a:
- cerca de 3% a menos de colesterol total;
- cerca de 3% a menos de LDL-colesterol;
- cerca de 7% a menos de triglicerídeos;
- porém, níveis um pouco menores de HDL-colesterol (em torno de 1% a menos).
À primeira vista, isso poderia ser entendido como uma “vantagem” dos PUFA. Mas o editorial deixa claro que não é tão simples transformar esses números em recomendações diretas para toda a população.
3. O problema de olhar só para o nutriente e esquecer o alimento
Um ponto central do texto é que PUFA e MUFA vêm de alimentos muito diferentes, com conjuntos de nutrientes e compostos bioativos distintos.
Nos estudos analisados, entraram, por exemplo:
- óleos ricos em PUFA: girassol, soja, milho, semente de uva, cártamo, linhaça, camelina, algodão e misturas;
- óleos ricos em MUFA: azeite de oliva, óleo de canola, óleos “alto-oleico” (como algumas versões de girassol e cártamo), óleo de farelo de arroz e misturas;
- alimentos como nozes, amêndoas e outras oleaginosas adicionados à dieta.
Esses alimentos diferem não apenas no percentual de MUFA e PUFA, mas também em:
- polifenóis e outros compostos bioativos;
- tipo específico de ácidos graxos;
- outros micronutrientes e componentes que podem influenciar inflamação, oxidação, coagulação e metabolismo.
Ou seja, quando se observa que um grupo teve melhora nos exames, não dá para afirmar com segurança que o efeito veio apenas da proporção entre MUFA e PUFA. Outros componentes dos alimentos podem estar desempenhando um papel importante.
Por isso, o editorial defende que a interpretação dos resultados deve ser cuidadosa e que não basta dizer: “PUFA é melhor que MUFA” sem considerar de quais alimentos essas gorduras vêm.
4. LDL-colesterol é importante, mas não conta a história inteira
O texto reconhece que o LDL-colesterol é um marcador bem estabelecido na cardiologia, principalmente porque:
- há forte base genética para níveis elevados;
- medicamentos que reduzem LDL-colesterol diminuem eventos cardiovasculares em grandes estudos.
No entanto, o editorial chama atenção para vários limites dessa visão quando se fala de alimentação:
- O LDL não é um bloco único. Ele é formado por partículas de tamanhos diferentes, com perfis diferentes de risco. Mudanças no LDL total podem esconder alterações na qualidade dessas partículas.
- Muitos eventos cardiovasculares acontecem mesmo com LDL em faixas “aceitáveis”. Em grandes coortes, uma parcela importante de pessoas internadas com doença coronariana tinha LDL considerado “normal”. Isso mostra que outros fatores, além do LDL, também são determinantes para o risco.
- A alimentação atua em múltiplos mecanismos ao mesmo tempo. Dietas diferentes podem influenciar:
- inflamação;
- estresse oxidativo;
- coagulação e trombose;
- função do endotélio;
- pressão arterial;
- sensibilidade à insulina;
- partículas remanescentes e lipoproteína(a).
Um exemplo citado é o estudo PREDIMED: um padrão de dieta mediterrânea suplementado com azeite de oliva reduziu eventos cardiovasculares em cerca de 30%, sem grandes mudanças no LDL-colesterol médio do grupo. Isso indica que o benefício clínico não depende apenas do LDL, e reforça a importância de olhar para o padrão alimentar como um todo, e não só para um número no exame.
5. Quando mexer nos lipídios não reduz (e às vezes até aumenta) o risco
Para ilustrar o risco de confiar apenas em marcadores de laboratório, o editorial lembra intervenções farmacológicas que melhoram o perfil lipídico, mas não reduziram eventos cardiovasculares na prática – algumas até pioraram desfechos.
Entre os exemplos citados:
Terapia hormonal com estrogênio em mulheres pós-menopausa:
- reduziu LDL-colesterol e aumentou HDL-colesterol;
- porém, grandes ensaios clínicos mostraram aumento de eventos cardiovasculares e outros desfechos negativos.
- Torcetrapib (inibidor de CETP):
- reduziu significativamente o LDL-colesterol e aumentou o HDL-colesterol;
- em estudo com mais de 15 mil pacientes, houve aumento de eventos cardiovasculares e aumento de mortalidade geral, levando à interrupção precoce.
- Clofibrato:
- melhorou perfil lipídico (LDL, HDL e triglicerídeos);
- mas não trouxe o benefício esperado em desfechos clínicos e se associou a maior mortalidade.
A mensagem é clara: melhorar o exame não garante automaticamente menor risco de infarto ou AVC. O editorial propõe que essa mesma cautela precisa ser aplicada quando se avaliam dietas apenas pela mudança em um marcador, como o LDL-colesterol total.
6. Gordura saturada, MUFA e PUFA: contexto importa
O texto também lembra que revisões recentes de ensaios clínicos e estudos observacionais não mostram uma relação tão simples entre consumo de gordura saturada e aumento de eventos cardiovasculares.
Uma revisão publicada em 2020 no Journal of the American College of Cardiology é citada como exemplo de reavaliação crítica das recomendações tradicionais. Essa revisão sugere que o foco deve se deslocar de “quanto de gordura saturada a pessoa consome” para “quais alimentos que contêm essa gordura fazem parte da dieta e em que contexto de padrão alimentar eles aparecem”.
Ao mesmo tempo, há dados sugerindo que diferentes tipos de gordura podem alterar o tamanho e o número das partículas de LDL:
- dietas ricas em PUFA tendem a reduzir várias subclasses de LDL;
- dietas ricas em MUFA podem modificar a distribuição, aumentando algumas partículas maiores e reduzindo as menores.
Esses detalhes mostram que olhar apenas o LDL total é simplificador demais e que a fisiologia real é mais complexa.
7. Por que adotar uma abordagem baseada em alimentos?
Diante desse cenário, o editorial defende uma mudança de foco:
- sair do discurso “PUFA vs MUFA vs gordura saturada”;
- entrar em uma visão centrada em alimentos reais e padrões alimentares.
As próprias Dietary Guidelines for Americans já caminham nessa direção ao mencionar alimentos específicos, como:
- azeite de oliva, óleo de canola e óleo de abacate;
- alimentos integrais, frutas, vegetais, nozes e outras fontes de gorduras insaturadas.
O autor propõe que futuros estudos levem em conta:
- Fontes alimentares específicas (quais óleos, quais alimentos);
- Padrões alimentares completos, em vez de isolar um nutriente;
- Biomarcadores mais robustos de aterosclerose, incluindo exames de imagem não invasivos;
- Desfechos clínicos reais (infartos, AVC, mortalidade), e não só exames de sangue.
Para o leitor comum, a mensagem prática pode ser resumida assim:
as pessoas não comem “gramas de PUFA ou MUFA”, comem alimentos.
Portanto, o que mais importa é quais alimentos e qual padrão alimentar se repete dia após dia.
8. Mensagem final do editorial
O texto conclui que:
- a nova meta-análise sugere que dietas mais ricas em PUFA melhoram alguns exames em comparação às ricas em MUFA, mas isso não é suficiente para mudar diretrizes por conta própria;
- a grande variedade de óleos e alimentos estudados mostra que o efeito não pode ser atribuído apenas ao tipo de gordura;
- LDL-colesterol continua sendo um marcador importante, mas não pode ser o único guia quando o assunto é alimentação;
- experiências com medicamentos que melhoram o perfil lipídico, mas não reduzem – e às vezes aumentam – eventos cardiovasculares, reforçam a necessidade de cautela;
- evidências recentes pedem uma revisão da forma como se enxerga a gordura saturada na dieta;
- o caminho mais promissor é uma abordagem baseada em alimentos, integrando o padrão alimentar, biomarcadores mais avançados e desfechos clínicos reais.
Em resumo, o editorial convida profissionais de saúde e formuladores de políticas a darem menos atenção a números isolados e mais ao padrão de alimentação como um todo, respeitando a complexidade da relação entre dieta, lipídios do sangue e doença cardiovascular.
Fonte: https://doi.org/10.1016/j.ajcnut.2025.11.007
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