Explorando os impactos neurológicos da dieta cetogênica: uma revisão abrangente

O artigo de Piotr Kucharczyk e colaboradores, publicado na revista Wiadomości Lekarskie, apresenta uma revisão ampla sobre como a dieta cetogênica se relaciona com diferentes doenças neurológicas. Para isso, os autores buscaram estudos nas bases PubMed e Google Scholar, focando principalmente em epilepsia, doença de Alzheimer, enxaqueca, doença de Parkinson, depressão e esclerose múltipla.

O objetivo central foi reunir, em um único trabalho, os principais achados sobre efeitos terapêuticos, mecanismos de ação e possíveis consequências da dieta cetogênica nesses contextos neurológicos, sem propor recomendações práticas, mas descrevendo o que a literatura científica mostra até o momento.

O que é a dieta cetogênica segundo a revisão

O texto descreve a dieta cetogênica como um padrão alimentar com:

  • Alta proporção de gorduras,
  • Quantidade muito reduzida de carboidratos,
  • Proteína em nível considerado adequado.

Esse arranjo nutricional tem como objetivo induzir um estado de cetose, em que o organismo aumenta a quebra de ácidos graxos e a produção de corpos cetônicos, como beta-hidroxibutirato, acetoacetato e acetona.

Os autores destacam que:

  • Em várias situações fisiológicas (jejum, período neonatal, dieta muito baixa em carboidratos), a oxidação de corpos cetônicos torna-se importante para o metabolismo energético.
  • O cérebro, embora use preferencialmente glicose, pode suprir até cerca de 60% das suas necessidades energéticas com corpos cetônicos quando estes estão elevados.
  • Esses compostos não atuam apenas como combustível, mas também como mediadores em processos de sinalização celular, inflamação, estresse oxidativo e função mitocondrial.

Epilepsia: principal campo com evidências consolidadas

A revisão lembra que o uso de jejum e restrição alimentar como tratamento de crises epilépticas é descrito desde a Antiguidade. A partir do século XX, esse princípio foi sistematizado na forma de dieta cetogênica.

Entre os estudos citados, um dos mais detalhados avaliou 160 crianças com epilepsia fármaco-resistente, acompanhadas por até 24 meses em dieta cetogênica. Os resultados relatados foram:

  • Ausência de crises em:

    • 13,7% após 3 meses,
    • 12,5% após 6 meses,
    • 14,4% após 12 meses,
    • 10,6% após 24 meses.
  • Redução de pelo menos 50% na intensidade das crises em:
    • 41,9% após 3 meses,
    • 37,5% após 6 meses,
    • 28,7% após 12 meses,
    • 16,2% após 24 meses.

Ao combinar a remissão completa com reduções iguais ou superiores a 50%, a dieta cetogênica esteve associada a melhora relevante em até 48,31% das crianças avaliadas.

Os autores também mencionam estudos com triglicerídeos de cadeia média (MCT) adicionados à alimentação duas vezes ao dia por três meses, em adultos. Nessa abordagem, houve redução da frequência de crises em 42% dos participantes, sugerindo que formulações com MCT podem ser alternativas para quem não consegue seguir o modelo clássico de dieta cetogênica.

De forma geral, o artigo apresenta a epilepsia como a condição neurológica com maior volume de evidências clínicas ligadas à dieta cetogênica.

Doença de Alzheimer: melhora em testes cognitivos e funcionais

Na doença de Alzheimer, os autores destacam que:

  • Há sinais de resistência à insulina no cérebro, com prejuízo das vias glicolíticas e do ciclo do ácido cítrico.
  • Estudos de imagem sugerem que hiperglicemia crônica se associa à redução de volume de substância cinzenta e do hipocampo, região central para a memória.

Dentro desse contexto, a revisão cita um ensaio clínico randomizado com 26 pessoas com doença de Alzheimer, submetidas a dieta cetogênica por 12 meses. Ao final, foram observadas:

  • Melhora média de 5 pontos na escala ACE-III (função cognitiva global),
  • Melhora média de 2 pontos na escala ADCS-AD (desempenho nas atividades do dia a dia).

Outro estudo mencionado, com bebida cetogênica ofertada por 6 meses a pacientes com Alzheimer, encontrou que ganhos em testes cognitivos se correlacionaram diretamente com:

  • aumento das concentrações de corpos cetônicos no sangue,
  • maior captação desses corpos cetônicos pelo cérebro.

Assim, o artigo aponta que, em Alzheimer, a literatura descreve melhoras mensuráveis em cognição e funcionalidade, possivelmente relacionadas ao fornecimento de uma fonte alternativa de energia para um cérebro com metabolismo da glicose comprometido.

Enxaqueca: redução de crises, dor e uso de medicamentos

A revisão lembra que a enxaqueca é uma das principais causas de incapacidade global, sobretudo antes dos 50 anos, e que muitos pacientes apresentam resposta limitada aos tratamentos habituais.

O artigo resume dois estudos em que pessoas com enxaqueca de difícil controle foram divididas em:

  • grupo em dieta cetogênica,
  • grupo em dieta pobre em carboidratos, mas sem alcançar cetose.

Nos participantes que seguiram a dieta cetogênica, foram descritos:

  • menor frequência de ataques de enxaqueca,
  • redução da intensidade da dor,
  • menor uso de medicação para alívio das crises.

No grupo em dieta apenas pobre em carboidratos, os autores relatam ausência de benefício significativo. Esse contraste é apresentado como indicativo de que a cetose em si parece ter papel relevante, e não apenas a redução de carboidratos.

Doença de Parkinson: ganhos motores e de bem-estar

Para a doença de Parkinson, o artigo descreve que a dieta cetogênica foi estudada em menor escala, mas com alguns achados clínicos relevantes:

  • Estudos sugerem que a dieta pode aumentar a biodisponibilidade da levodopa, medicamento central no tratamento da doença.
  • Há relatos de redução da mortalidade de neurônios dopaminérgicos em modelos experimentais submetidos a dieta cetogênica.

Em avaliações clínicas, os autores destacam estudos nos quais, após seguir a dieta cetogênica, pacientes com Parkinson apresentaram:

  • melhora de humor e equilíbrio,
  • melhor função motora,
  • redução do tremor em poucos dias a semanas de intervenção,
  • em outros protocolos, melhora da fala e da memória de curto prazo.

O trabalho também discute a modulação da microbiota intestinal, com aumento de bactérias do gênero Prevotella e redução de Enterobacteriaceae, o que pode estar ligado a um perfil mais anti-inflamatório em nível intestinal.

Depressão: possíveis efeitos na neurotransmissão

No campo da depressão, a revisão enfatiza principalmente mecanismos biológicos, e não grandes ensaios clínicos. Segundo o texto:

  • A patogênese da depressão envolve alterações na síntese de serotonina, derivada do aminoácido triptofano, além de participação de outros mediadores, como GABA, substância P e BDNF.
  • A dieta cetogênica inclui alimentos ricos em triptofano e foi associada, em estudos experimentais, a aumento da produção de GABA, neurotransmissor com efeito inibitório e calmante, que pode potencializar a ação de alguns fármacos ansiolíticos.

Ao mesmo tempo, a revisão também menciona que algumas pesquisas observaram redução de bactérias intestinais como Bifidobacterium e Lactobacillus em modelos de dieta cetogênica, o que, em teoria, poderia contribuir para sintomas depressivos, já que esses microrganismos são capazes de sintetizar neurotransmissores.

O texto, portanto, apresenta um quadro misto: há sinais de potencial benefício em sintomas e bem-estar em determinados cenários, mas também hipóteses de efeitos desfavoráveis via microbiota, demandando mais estudos específicos.

Esclerose múltipla: marcadores biológicos e qualidade de vida

Na esclerose múltipla (EM), doença autoimune que danifica a mielina e causa comprometimento motor e sensorial, a revisão sumariza evidências ainda iniciais, porém relevantes:

  • BDNF e mielina

    • O corpo cetônico beta-hidroxibutirato atravessa a barreira hematoencefálica e aumenta a síntese de BDNF, fator neurotrófico associado ao crescimento e à regeneração de mielina.
    • Os autores citam que níveis séricos de glicose apresentam correlação inversa com BDNF, reforçando o interesse em estratégias que reduzam hiperglicemia.
  • Variação “mediterrânea” da dieta cetogênica
    • A maior ativação do fator de transcrição CREB foi observada em um padrão de dieta cetogênica com características mediterrâneas, o que estaria ligado ao aumento adicional de BDNF.
  • Neurofilamento de cadeia leve (sNfL)
    • Após seis meses de dieta cetogênica, um estudo citado registrou redução dos níveis séricos de sNfL, biomarcador utilizado no acompanhamento da EM, interpretada como efeito neuroprotetor.
  • Inflamação e sintomas
    • A revisão relata redução de enzimas COX-1 e COX-2 e de citocinas pró-inflamatórias após intervenção dietética.
    • Também são descritas melhoras em saúde física e mental, incluindo maior sensação de bem-estar e alívio de sintomas depressivos em pessoas com EM.

Os autores ressaltam que o número de estudos em EM ainda é pequeno, mas consideram os resultados obtidos até o momento suficientemente consistentes para justificar novas pesquisas.

Limitações e efeitos adversos relatados

Embora o foco da revisão esteja nos possíveis benefícios, o texto dedica uma seção às limitações e eventos adversos associados à dieta cetogênica:

  • A maior parte das evidências clínicas robustas ainda se concentra em epilepsia; para outras doenças, o número de estudos é menor e muitas vezes com amostras pequenas.
  • Em estudos de longa duração, a adesão é um desafio: falta de motivação, dificuldade prática com o plano alimentar e, em alguns casos, piora de sintomas foram motivos de abandono.

Em relação a efeitos adversos, o artigo destaca:

  • Meta-análise de 2020 com 932 pessoas (711 crianças e 221 adultos) com epilepsia em dieta cetogênica, em que foram frequentes:

    • diarreia, náuseas e vômitos;
    • em crianças: perda de peso, infecções recorrentes e sonolência aumentada;
    • em adultos: cefaleia, dor abdominal e maior risco de nefrolitíase;
    • em mulheres: irregularidades menstruais.
  • Estudo de 2020 com 158 crianças, na maioria com epilepsia, em que:
    • vômitos ocorreram em 80% dos casos;
    • hipoglicemia abaixo de 40 mg/dL foi registrada em 44 pacientes;
    • seis apresentaram cetose considerada excessiva.
  • Em pessoas com doença de Parkinson, alguns estudos relataram maior irritabilidade, fome e sede durante a dieta.

Os autores mencionam, ainda, o quadro conhecido como “gripe cetogênica”, descrito como um conjunto de sintomas transitórios e autolimitados no início da dieta, sem caracterização de ameaça grave à saúde, mas capaz de afetar a tolerabilidade.

Síntese final da revisão

Ao reunir estudos sobre diversas doenças neurológicas, o artigo conclui que a dieta cetogênica:

  • apresenta evidências mais sólidas em epilepsia, com reduções marcantes na frequência e intensidade de crises, incluindo casos de remissão;
  • mostra resultados promissores em doença de Alzheimer, enxaqueca, doença de Parkinson e esclerose múltipla, tanto em desfechos clínicos (sintomas, funcionalidade, qualidade de vida) quanto em marcadores biológicos (metabolismo energético, BDNF, sNfL, inflamação);
  • ainda carece de ensaios maiores e de longo prazo para que se definam com segurança o papel, os limites e as indicações precisas dessa estratégia alimentar em cada doença específica;
  • exige atenção a eventos adversos e à dificuldade de adesão, elementos que não podem ser ignorados na interpretação dos resultados.

Em resumo, a revisão apresentada pelos autores oferece uma visão integrada de como a dieta cetogênica vem sendo estudada no campo da neurologia, apontando tanto o potencial terapêutico quanto a necessidade de avaliação cuidadosa e continuidade da pesquisa antes de qualquer consolidação em protocolos clínicos amplos.

Fonte: https://doi.org/10.36740/WLek/208442

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