1. Por que a “Dieta Mediterrânea” virou um símbolo mundial
O artigo de Belinda Fettke conta a história de como a “Dieta Mediterrânea” deixou de ser o retrato de vidas reais ao redor do mar Mediterrâneo e passou a funcionar como uma marca cuidadosamente construída.
Durante décadas, o público ouviu que esse padrão alimentar seria o modelo “comprovado pela ciência” para proteger o coração: azeite visto como “ouro líquido”, cenários de costa ensolarada, pessoas mais magras, ativas e supostamente livres de estresse.
Belinda mostra que essa imagem não surgiu de forma espontânea. Ela foi:
- selecionada,
- fotografada,
- patrocinada,
- e ajustada para caber em um roteiro pré-definido.
O mesmo processo que transformou as Blue Zones™ em ícone de longevidade agora é usado para promover um “estilo de vida mediterrâneo tradicional” (tMedL), alinhado a uma visão de mundo plant-based já consolidada em instituições de Medicina do Estilo de Vida.
2. Um Mediterrâneo real, diverso e nada homogêneo
Antes de existir uma “Dieta Mediterrânea” em guias oficiais, havia um Mediterrâneo real: 22 países em três continentes, com enormes diferenças de clima, geografia, religião e economia.
No artigo, Belinda Fettke destaca três dimensões importantes:
Geografia
- Regiões costeiras sempre dependeram mais de peixe e frutos do mar.
- Áreas de montanha recorreram fortemente aos animais de criação e seus derivados (carne, leite, queijos, ovos).
- Religião e regras alimentares
- Países de maioria muçulmana proibem carne de porco e restringem o álcool.
- Países de maioria católica mantêm períodos de abstinência de carnes de animais de sangue quente, mas permitem peixes e nunca restringem o vinho.
- Na Grécia e em outros locais de tradição ortodoxa, há calendários extensos de jejum, com 120–180 dias por ano de restrições específicas.
- Ciclos de jejum e festa
- A alimentação não seguia um padrão fixo e permanente de “pouca carne”. Havia longos períodos de jejum, seguidos por festas em que animais inteiros eram consumidos – com carne, vísceras, ossos, caldos e gorduras.
Em outras palavras, a frase “eles não comem muita carne” não traduz a complexidade desses ciclos de privação e abundância, marcados por fé, sazonalidade e acesso real a alimentos.
3. O jejum ortodoxo nunca foi realmente vegano
Um ponto central do texto é o contraste entre a prática histórica do jejum na Igreja Ortodoxa e o modo como ela vem sendo descrita em documentos modernos.
O Mediterranean Lifestyle Medicine Institute chegou a afirmar que os jejuns ortodoxos envolveriam uma dieta completamente vegana. No entanto, como Belinda detalha em seu artigo, a tradição ortodoxa:
- restringe carne de animais de sangue vermelho, ovos, laticínios e peixes com nadadeiras e escamas;
- permite mariscos, lulas, polvos, mexilhões e caracóis.
Esses animais foram considerados “sem sangue” nos textos canônicos porque apresentam sangue azul, rico em hemocianina, em vez de hemoglobina. Isso não é um detalhe folclórico:
- caracóis e frutos do mar fornecem proteína de boa qualidade e nutrientes como vitamina B12, ferro, magnésio, selênio e fósforo;
- essa presença de alimentos de origem animal ajudava a sustentar jejuns prolongados, reduzindo o risco de desnutrição.
Por isso, Belinda caracteriza esse padrão como uma onivoria ritualizada, não como veganismo.
4. Creta do pós-guerra: fome, racionamento e baixa expectativa de vida
Antes que o azeite fosse alçado ao posto de símbolo máximo da saúde cardiovascular, a Fundação Rockefeller enviou o pesquisador Leland Allbaugh a Creta. Seu relatório de 1948, publicado em 1953, foi uma das primeiras descrições modernas da ilha após a Segunda Guerra Mundial.
Belinda resgata alguns pontos desse documento:
- A ocupação nazista devastou rebanhos, colheitas e propriedades.
- Muitas famílias recuaram para regiões montanhosas, com menos acesso a terras férteis.
- Em 1948, a população ainda vivia sob racionamento; houve relatos diretos de famílias dizendo que “sentiam fome a maior parte do tempo”.
- As listas de racionamento incluíam açúcar, farinha de trigo (parcialmente importada), arroz (totalmente importado), leite em pó, leguminosas secas e pequenas quantidades de leite enlatado para crianças e gestantes.
Allbaugh também observou que:
- muitas famílias cuidavam de uma cabra ou algumas galinhas para obter leite, queijo, iogurte e ovos;
- a expectativa de vida era baixa, e o próprio relato destacava que grande parte da população estava em situação de risco nutricional.
Em seu texto, Belinda sublinha que a famosa “dieta pobre em carne e rica em grãos e leguminosas” daquele período não representava um ideal de saúde, e sim uma realidade de pobreza, destruição de guerra e escassez.
5. Como a escassez virou “modelo de dieta saudável”
Na década de 1950, Ancel Keys chega a Creta e, em parte, se baseia nesse cenário pós-guerra descrito por Allbaugh. No Estudo dos Sete Países, Keys apresenta Creta como exemplo de baixa incidência de doença cardiovascular, apesar de uma ingestão moderada de gordura total.
Na divulgação, o foco recai em três pilares:
- consumo relativamente reduzido de carne;
- valorização de leguminosas, grãos, frutas e vegetais;
- azeite como gordura central.
Segundo o relato de Belinda em The Mediterranean Makeover, esse retrato foi construído a partir de:
- dados coletados em período de jejum religioso (incluindo Quaresma, quando muitos restringiam ainda mais alimentos de origem animal);
- um momento histórico ainda marcado por racionamento e recuperação econômica;
- pouca valorização, nos registros, da alternância entre jejum e festas com consumo abundante de carnes, vísceras, caldos e queijos de leite cru, além de frutos do mar.
Na prática, uma fotografia de escassez e religiosidade foi sendo transformada, ao longo dos anos, em “prova” de que um padrão predominantemente vegetal, com pouco consumo de animais, seria a essência do Mediterrâneo saudável.
6. Do padrão alimentar à marca: tMedL e Medicina do Estilo de Vida
Belinda também descreve o encontro realizado em 2023, na ilha de Leros, no qual um grupo restrito de convidados – médicos, acadêmicos e líderes da Medicina do Estilo de Vida – se reuniu para redigir um “consenso internacional” sobre o chamado Traditional Mediterranean Lifestyle (tMedL).
Segundo o texto, esse encontro teve características marcantes:
- participação por convite, com forte presença de nomes já alinhados a uma visão de alimentação plant-based;
- apoio institucional do Mediterranean Lifestyle Medicine Institute;
- ambiente cuidadosamente construído (atividades sob oliveiras, oficinas de culinária, jantares em tavernas selecionadas), reforçando a estética mediterrânea já popularizada desde os anos 1990.
O documento final, publicado em 2024, apresenta um “estilo de vida mediterrâneo tradicional” que inclui:
- alimentação centrada em alimentos de origem vegetal;
- azeite como gordura simbólica;
- ênfase em leguminosas, nozes e sementes;
- recomendações de movimento diário, convívio social, “propósito” e moderação.
Belinda argumenta que esse modelo se encaixa perfeitamente nas necessidades da Medicina do Estilo de Vida, inclusive porque:
- oferece um imaginário cultural positivo (praias, vilarejos, refeições em família);
- cria distância visível das origens ligadas à Reforma de Saúde Adventista do Sétimo Dia;
- mantém, porém, a base de restrição de alimentos de origem animal, agora revestida de “tradição mediterrânea”.
7. Escores de “Dieta Mediterrânea” e um povo que não cabe no molde
Outro ponto tratado no texto é o surgimento dos escores de adesão à “Dieta Mediterrânea” nos anos 1990. Pesquisadoras como Antigone Kouris-Blazos e Antonia Trichopoulou criaram sistemas de pontuação para medir o quanto alguém seguiria um “padrão mediterrâneo ideal”.
Esses escores:
- foram construídos décadas depois dos dados originais de consumo;
- usaram questionários alimentares antigos, muitas vezes coletados em contextos específicos;
- partiram de um conceito teórico de “dieta tradicional” que já refletria a leitura de Ancel Keys e a ideia de um padrão mais vegetal, com menor presença de carnes.
Ao aplicar o escore em idosos gregos, uma parcela significativa da amostra não alcançava as metas definidas, o que indica que muitas pessoas, na prática, não viviam como o modelo proposto. Mesmo assim, esses trabalhos passaram a ser citados para sustentar afirmações como:
- “gregos não comem muita carne”;
- “a Dieta Mediterrânea é basicamente baseada em plantas”;
- “as gorduras animais eram pouco relevantes na tradição mediterrânea”.
No relato de Belinda, os dados mostram justamente o contrário: diversidade, desvios e um padrão real de alimentação bem mais heterogêneo do que o ideal promovido em pirâmides e infográficos.
8. Instituições, religião e busca de legitimidade cultural
Na parte final, o texto de Belinda Fettke aproxima duas histórias:
- A origem da Medicina do Estilo de Vida moderna, com raízes em instituições ligadas à Igreja Adventista do Sétimo Dia e suas orientações alimentares;
- A apropriação recente da “tradição mediterrânea” como forma de dar uma aparência culturalmente neutra a um padrão alimentar que continua, em grande medida, restringindo alimentos de origem animal.
A autora destaca que:
- entidades como o American College of Lifestyle Medicine e a World Lifestyle Medicine Organisation mantêm vínculos com lideranças de origem adventista;
- a marca Blue Zones™ pertence a estruturas ligadas à mesma igreja;
- o Mediterranean Lifestyle Medicine Institute surge como ponte entre esse universo e a narrativa do “estilo de vida mediterrâneo tradicional”.
Um ponto simbólico ilustra bem o conflito:
- na tradição ortodoxa, mariscos são permitidos no jejum porque não possuem “sangue vermelho”;
- na tradição adventista, mariscos são proibidos por serem considerados “impuros”;
- na narrativa atual da Medicina do Estilo de Vida, esses alimentos praticamente desaparecem, para que o jejum possa ser descrito como “completamente vegano”.
Assim, alimentos que ajudaram a sustentar jejuns prolongados, fornecendo proteína e micronutrientes importantes, acabam sendo apagados para que a mensagem plant-based permaneça coerente.
9. Resgatando a história para recuperar a honestidade
No conjunto, o texto de Belinda Fettke não busca negar que muitos estudos associem padrões alimentares mediterrâneos a bons desfechos de saúde. O objetivo é outro: mostrar que o caminho entre o Mediterrâneo real e a “Dieta Mediterrânea oficial” é longo, cheio de recortes seletivos, decisões políticas e interesses institucionais.
Ao olhar para a história completa, o leitor encontra:
- uma Creta pós-guerra vivendo racionamento, fome e baixa expectativa de vida;
- um calendário religioso marcado por jejuns e festas, em que a carne e outros alimentos de origem animal eram consumidos com intensidade em momentos específicos;
- populações que não se encaixam perfeitamente nos escores e pirâmides criados depois;
- uma transformação gradual de um modo de vida complexo em um produto comunicável, com forte apelo visual, apoiado em azeite, grãos, leguminosas e uma estética de “vida simples ao sol”.
Ao humanizar essa trajetória, a autora defende que as discussões sobre alimentação e saúde pública precisam considerar não apenas gráficos e slogans, mas também:
- a história concreta dos povos,
- a relação entre fé, cultura e comida,
- e o direito das comunidades a decidir o que colocar no próprio prato.
O Mediterrâneo, na visão apresentada em The Mediterranean Makeover, não é um cenário uniforme criado para campanhas educativas. É um mosaico vivo, onde escassez, trabalho duro, rituais religiosos, festas com carne e queijos, vegetais silvestres, leguminosas, azeite e frutos do mar coexistem.
Reconhecer essa complexidade não invalida pesquisas nem impede recomendações de saúde. Mas ajuda a lembrar que nenhum padrão alimentar deveria ser tratado como dogma imutável, e que a honestidade com a história é parte essencial de qualquer conversa séria sobre nutrição.
Fonte: https://truthzones.substack.com/p/the-mediterranean-makeover
