Diferenciando cetoadaptação e cetose em dietas com pouco ou nenhum carboidrato


Na discussão sobre dietas com pouco carboidrato, costuma-se tratar como sinônimos três conceitos diferentes: usar mais gordura como combustível, estar em cetose e estar “cetoadaptado”. Na prática clínica e na pesquisa, porém, essas ideias não se sobrepõem perfeitamente.

O’Hearn, em um artigo conceitual publicado na Frontiers in Nutrition em 2024, propõe diferenciar de forma explícita metabolismo baseado em gordura, cetose e cetoadaptação, justamente para evitar confusões de interpretação em estudos e aplicações clínicas.

Esse artigo, somado a revisões sobre dietas com pouco carboidrato em diabetes, obesidade e performance física, permite mostrar que:

Estar adaptado a usar gordura como principal fonte de energia não significa obrigatoriamente estar em cetose o tempo todo, mesmo seguindo uma dieta com baixo ou nenhum carboidrato.

A seguir, veremos essa distinção em passos.

1. O que é cetose nutricional?

Do ponto de vista bioquímico, cetose é definida como um estado em que há elevação sustentada de corpos cetônicos no sangue, geralmente na faixa de aproximadamente 0,5 a 3,0 mmol/L, com equilíbrio ácido-base preservado, em contraste com a cetoacidose patológica.(Wikipedia)

No artigo de 2024, O’Hearn define uma dieta cetogênica de maneira operacional: é aquela que, “independentemente da ingestão calórica exata”, leva a um metabolismo baseado em gordura marcado por cetose sustentada. Em outras palavras:

  • predomínio de gordura como combustível, medido, por exemplo, pelo quociente respiratório;
  • produção e uso contínuo de corpos cetônicos em níveis detectáveis.

Esse quadro costuma ocorrer quando:

  • o consumo de carboidratos é suficientemente baixo;
  • a ingestão de proteína não é alta a ponto de suprir, sozinha, a maior parte da glicose via gliconeogênese;
  • há disponibilidade adequada de gordura (dietética e/ou corporal).

2. O que é cetoadaptação ou adaptação à gordura?

No mesmo artigo, O’Hearn descreve que “o processo de mudança de um metabolismo baseado em glicose para um metabolismo baseado em gordura é chamado de cetoadaptação”.

Isso significa que:

  • em um metabolismo baseado em glicose, a maior parte da energia vem de glicose;
  • em um metabolismo baseado em gordura, a maior parte da energia vem de ácidos graxos e, em certos contextos, de corpos cetônicos.

O’Hearn ressalta que essa transição não é instantânea: a passagem completa de um estado predominantemente glicolítico para um estado baseado em gordura, com todas as adaptações fisiológicas esperadas, leva pelo menos alguns dias, e muitas intervenções de curto prazo não capturam o quadro estável de uma dieta cetogênica bem estabelecida.

Estudos em atletas de endurance ajudam a visualizar o resultado desse processo. Em ultramaratonistas que consumiam uma dieta com cerca de 10% de carboidratos, 19% de proteína e 70% de gordura por pelo menos 9 a 36 meses, Volek e colaboradores encontraram:

  • oxidação máxima de gordura 2,3 vezes maior que em atletas com dieta rica em carboidratos;
  • manutenção de estoques de glicogênio muscular semelhantes, apesar da maior queima de gordura.(PubMed)

Esse padrão é descrito como “keto-adapted”, mostrando que a adaptação à gordura envolve não só presença de corpos cetônicos, mas ajustes enzimáticos, mitocondriais e de regulação de combustível.

3. Por que “usar mais gordura” não é sinônimo de “estar em cetose”?

3.1. Faixas de carboidrato: nem toda dieta baixa em carboidrato é cetogênica

Revisões sobre dietas com pouco carboidrato em diabetes e obesidade costumam distinguir:

  • dieta muito baixa em carboidratos/cetogênica (VLCKD): cerca de 20–50 g/dia de carboidratos (ou <10% da energia), “em níveis que induzem cetose na maioria das pessoas”, mas “havendo variabilidade individual”.(ScienceDirect)
  • dietas com baixo teor de carboidratos não necessariamente cetogênicas: <26% da energia diária, podendo melhorar peso e controle glicêmico, mas sem induzir cetogênese de forma consistente em todos os indivíduos.(BMJ)

Um resumo de evidência publicado no BMJ destaca exatamente isso: mesmo dietas muito baixas em carboidratos, definidas apenas por porcentagem calórica, não produzem cetose de forma uniforme na prática, devido a diferenças individuais na produção e uso de corpos cetônicos.

Assim, uma pessoa pode:

  • reduzir carboidratos de forma significativa;
  • aumentar a taxa de oxidação de gorduras;
  • e, ainda assim, não apresentar níveis estáveis ou elevados de corpos cetônicos, mesmo com dieta estruturada para ser “cetogênica” em teoria.

3.2. Papel da proteína e da gliconeogênese

Outro ponto crítico é a ingestão de proteína e a gliconeogênese. Uma revisão sobre aspectos nutricionais de dietas com restrição de carboidratos observa que:

Uma dieta com carboidratos restritos, alto teor de proteína e pouca gordura tende a se assemelhar, em padrões de uso de combustível, à fase III de jejum, em que há maior catabolismo de proteína, e não à fase II típica de uma cetose sustentada.(DOI)

Ao mesmo tempo, estudos de modelagem metabólica em humanos mostram que, em situações de baixa oferta de carboidratos:

  • ácidos graxos e corpos cetônicos podem ser desviados para rotas de gliconeogênese, produzindo glicose a partir de acetona e outros intermediários;
  • essas vias ajudam a cobrir a necessidade mínima de glicose do cérebro e de outros tecidos, mas limitam a necessidade de manter cetonas em níveis muito elevados.(PLOS)

Esses dados vão na mesma direção: é possível ter alto uso de gordura e forte atividade de gliconeogênese, com cetose relativamente modesta, sobretudo quando a proteína é abundante e a ingestão de gordura não é tão alta.

3.3. Estados mistos e sinais conflitantes

O’Hearn também chama atenção para a existência de “estados mistos”, em que coexistem sinais de metabolismo baseado em glicose e em gordura. Em seu artigo, ela observa que:

  • um metabolismo baseado em glicose pode liberar energia a partir de gordura sem se tornar “cetogênico”;
  • “não é necessário estar em cetose para usar estoques de gordura”;
  • altos níveis de gordura circulante podem induzir características de metabolismo baseado em gordura mesmo quando a glicose permanece elevada, produzindo sinais metabólicos mistos, como se observa em alguns quadros de resistência à insulina.(PMC)

Isso reforça a ideia central: uso predominante de gordura e elevação de corpos cetônicos são relacionados, mas não rigidamente acoplados.

4. Exemplos práticos de adaptação à gordura sem cetose constante

4.1. Dietas com carboidrato reduzido, mas ainda acima da faixa cetogênica

Diretrizes e revisões recentes sobre dietas com baixo teor de carboidratos em diabetes descrevem faixas como:(ScienceDirect)

  • <26% da energia em carboidratos: “low-carb”, com melhora de peso, glicemia e marcadores cardiometabólicos em muitos estudos, mas sem cetose obrigatória;
  • 10–26%: intermediário, podendo aumentar a oxidação de gorduras em comparação a dietas ricas em carboidratos, sem necessariamente atingir cetose em repouso em todas as medições.

Nesses cenários, há claro aumento do uso de gordura em repouso e durante o exercício, mas os níveis de corpos cetônicos podem permanecer baixos ou flutuantes, dependendo de:

  • horário da última refeição;
  • tamanho da refeição anterior;
  • nível de atividade física;
  • sensibilidade individual à insulina.

4.2. Dietas praticamente sem carboidrato, com muita proteína magra

Análises de rotas metabólicas em dietas praticamente isentas de carboidratos – como a dieta tradicional de povos árticos ricos em peixe e gordura de foca, mas também em proteína – mostram que:(PLOS)

  • uma parte relevante da glicose pode ser produzida a partir de proteínas e de intermediários gerados a partir de corpos cetônicos e acetona;
  • essa glicose endógena reduz a necessidade de manter níveis muito altos de corpos cetônicos, apesar do consumo mínimo de carboidratos.

O resultado é um quadro em que:

  • o organismo usa intensamente gordura e corpos cetônicos como combustível;
  • mas parte desses corpos cetônicos é redirecionada para produção de glicose;
  • o nível final de cetonas no sangue pode ser menor do que o esperado para a mesma quantidade de carboidratos em uma dieta com mais gordura e menos proteína.

Isso sugere que, em dietas muito pobres em carboidratos, o equilíbrio entre proteína e gordura é determinante para o grau de cetose, mesmo que a adaptação à gordura esteja plenamente presente.

5. Síntese: distinguindo adaptação à gordura e cetose

Com base nas evidências citadas, é possível organizar a distinção da seguinte forma:

  • Cetose nutricional

    • Estado bioquímico definido por elevação sustentada de corpos cetônicos em faixas fisiológicas.(Wikipedia)
    • Exige combinação de baixa disponibilidade de glicose e alta oferta de gordura, com proteína em níveis que não anulem a necessidade de corpos cetônicos.
  • Cetoadaptação / adaptação à gordura
    • Processo de mudança de um metabolismo baseado em glicose para um metabolismo baseado em gordura, descrito por O’Hearn.(PMC)
    • Inclui aumento da capacidade de oxidar ácidos graxos, ajustes hormonais e alterações em sinais de saciedade, sono e energia.
    • Pode ocorrer em maior ou menor grau, dependendo do tempo e da composição da dieta.
  • Uso aumentado de gordura sem cetose estável
    • Ocorre em dietas com carboidratos reduzidos, mas não necessariamente na faixa cetogênica, como mostrado em revisões e metanálises sobre diabetes e obesidade.(ScienceDirect)
    • Pode ocorrer também quando a proteína é relativamente alta e a gordura menos abundante, situação em que gliconeogênese cobre parte relevante da demanda de glicose, reduzindo o acúmulo de corpos cetônicos.(DOI)

Em termos práticos, isso significa que:

  • uma pessoa pode estar metabolicamente adaptada a usar gordura (com maior oxidação de ácidos graxos, menor dependência de glicose e mudanças hormonais compatíveis com um estado “baseado em gordura”);
  • e, ainda assim, não exibir cetose elevada em todas as medições, especialmente em dietas com proteína mais alta ou com carboidratos na faixa “baixa”, mas não estritamente cetogênica.

A distinção é importante para interpretação de estudos e da prática clínica, pois evita reduzir o sucesso ou fracasso de uma intervenção nutricional apenas à leitura de corpos cetônicos, desconsiderando outras adaptações metabólicas relevantes descritas na literatura.

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