O artigo de Pham e colaboradores, publicado na revista Nutrition Research Reviews, reuniu 59 estudos de randomização mendeliana (RM) sobre consumo habitual de café e mais de 160 desfechos de saúde, incluindo doenças, biomarcadores e mortalidade. O objetivo foi avaliar se existe evidência genética de que beber café causa benefícios ou danos à saúde em longo prazo.
Estudos observacionais anteriores sugeriam vários efeitos protetores do café – menor risco de doenças cardiovasculares, diabetes tipo 2, Parkinson, alguns cânceres e mortalidade geral. No entanto, esses estudos sofrem com fatores de confusão (como estilo de vida) e com a possibilidade de que pessoas já doentes mudem o consumo de café, o que dificulta saber se o café é realmente a causa dos efeitos observados.
A revisão mostra que, quando se usam métodos genéticos mais rigorosos, a maior parte desses benefícios amplos não se confirma. Ao mesmo tempo, não aparecem sinais fortes de grande dano para a maioria dos desfechos avaliados. Em linhas gerais, o café parece neutro para muitos problemas de saúde, com alguns potenciais riscos e alguns potenciais efeitos protetores específicos.
O que é randomização mendeliana (RM)
A randomização mendeliana é uma técnica estatística que usa variantes genéticas associadas a um comportamento ou exposição (neste caso, tomar mais ou menos café) como uma espécie de “experimento natural”.
Os autores lembram três condições básicas para que esse método funcione:
- Relevância: os genes usados como instrumento precisam estar associados ao consumo de café.
- Independência: esses genes não podem estar ligados a fatores de confusão importantes (por exemplo, hábitos de vida que, por si só, afetem o risco de doença).
- Exclusão: os genes devem influenciar o desfecho de saúde apenas por meio do consumo de café, e não por outros caminhos diretos.
Como os genes são “sorteados” ao nascer, esse tipo de análise reduz bastante o problema de confusão e de causa reversa, aproximando-se de um ensaio clínico, mas usando dados observacionais de grandes coortes populacionais.
Como a revisão foi conduzida
Os autores seguiram as diretrizes PRISMA para revisões sistemáticas e registraram o protocolo no PROSPERO. Foram pesquisadas bases como PubMed, Embase, Cochrane, CINAHL e repositórios de pré-print até setembro de 2022. A partir de 462 registros iniciais, 59 estudos preencheram os critérios de inclusão.
Características principais:
- Maioria dos estudos com desenho de RM de duas amostras (exposição e desfecho em bancos de dados diferentes).
- Instrumentos genéticos derivados principalmente de grandes estudos de associação genômica (GWAS), como o Coffee and Caffeine Genetics Consortium e o UK Biobank.
- Predomínio de participantes de ancestria europeia.
- Avaliação de 160 desfechos únicos, incluindo doenças cardiovasculares, cânceres, doenças metabólicas, renais, neurológicas e diversos biomarcadores.
A qualidade da evidência foi avaliada com uma versão modificada do sistema GRADE, adaptado para estudos de RM. Cerca de 69 % dos desfechos individuais receberam classificação de alta certeza, e aproximadamente um terço dos artigos foi classificado com qualidade global moderada.
Principais resultados por sistema orgânico
1. Doenças cardiovasculares
De forma geral, a RM não encontrou associação clara entre consumo habitual de café e:
- Doença arterial coronariana
- Insuficiência cardíaca
- Fibrilação atrial
- Hipertensão
- Aneurismas de aorta
- Acidente vascular cerebral (AVC) isquêmico e vários subtipos
- Embolia pulmonar
Os resultados para hemorragia intracerebral foram conflitantes entre diferentes estudos, e a meta-análise não permitiu conclusão firme.
Houve:
- Associação robusta com menor risco de varizes, com odds ratio em torno de 0,78 para cada aumento de 50 % no consumo de café.
- Evidência sugestiva de maior risco de trombose venosa e trombose venosa profunda, mas ainda considerada fraca.
2. Perfil lipídico (gorduras no sangue)
Quatro estudos de RM mostraram de forma consistente que maior consumo habitual de café se associa a:
- Aumento de colesterol total
- Aumento de LDL-colesterol
- Aumento de ApoB
Uma meta-análise apontou um aumento de cerca de 0,07 mmol/L em LDL por xícara adicional de café ao dia. Não houve associação consistente com ApoA-1, HDL-colesterol ou triglicerídeos.
Os autores destacam que esses resultados permaneceram mesmo após excluir variantes genéticas claramente pleiotrópicas (que também influenciam outros fatores metabólicos).
3. Cérebro, demência e enxaqueca
Os achados para o sistema nervoso são mistos:
- Alzheimer/demência: meta-análise de estudos de RM sugeriu aumento do risco de Alzheimer com maior consumo de café, embora os resultados ainda exijam confirmação em novos trabalhos.
- Huntington: houve associação provável entre maior consumo de café e idade de início mais precoce da doença de Huntington.
- Volume cerebral: um estudo relatou associação robusta entre maior consumo diário de café e menor volume de substância cinzenta, sem alteração consistente em outras medidas de volume cerebral ou em marcadores de substância branca.
- Parkinson, esclerose múltipla, epilepsia, TDAH e cognição global: não foram encontradas associações consistentes, à luz dos dados disponíveis.
Em contraste com esses achados, os autores encontraram evidência provável de menor risco de enxaqueca com maior consumo de café, com odds ratio em torno de 0,73 para cada aumento de 50 % no consumo.
4. Câncer
Quando analisados de forma ampla, os estudos de RM não confirmaram uma proteção generalizada do café contra câncer. Em geral, não foram observadas associações claras com:
- Câncer de mama, pulmão, tireoide, colo e reto, estômago, pâncreas, rins, bexiga, próstata, testículo, melanoma, linfomas e leucemias, entre outros.
Alguns resultados específicos se destacam:
- Câncer de esôfago: um estudo de grande porte encontrou associação robusta de maior risco com maior consumo de café; a meta-análise combinando UK Biobank e FinnGen apontou odds ratio de cerca de 2,67 para cada aumento de 50 % no consumo.
- Cânceres do sistema digestivo em geral: houve evidência provável de aumento de risco em um conjunto de tumores digestivos, embora nem todos individualmente tenham mostrado associação clara.
- Carcinoma hepatocelular: em coorte japonesa, o consumo de café mostrou associação provável com menor risco de hepatocarcinoma. Estudos posteriores citados pelos autores, porém, sugerem que esse efeito protetor pode não se reproduzir em populações asiáticas em geral, indicando possível influência da etnia.
- Câncer de ovário: meta-análise de RM apontou associação com menor risco de câncer de ovário, sobretudo na forma epitelial, com odds ratio aproximado de 0,86 para cada aumento de 50 % no consumo de café. No entanto, a discussão da revisão lembra que trabalhos mais recentes mostram resultados conflitantes, inclusive associações com subtipos específicos de maior risco, o que torna a interpretação ainda incerta.
- Mieloma múltiplo: houve associação provável de maior risco em um estudo, e a própria revisão cita evidência adicional posterior sustentando esse achado em outra coorte.
Em resumo, os autores concluem que não existe, até o momento, evidência genética forte de que o café reduza de forma ampla o risco de câncer, mas alguns tumores específicos parecem se associar a maior risco, enquanto outros podem estar ligados a menor risco, exigindo investigação adicional.
5. Metabolismo, obesidade e diabetes
A partir de grandes bancos de dados genéticos, os estudos de RM mostraram:
- Evidência sugestiva de maior risco de diabetes tipo 2 com maior consumo habitual de café.
- Associações prováveis de maior risco de obesidade, maior IMC, maior peso corporal e razão cintura–quadril mais alta.
- Ausência de associação consistente com glicemia de jejum, HbA1c, insulina de jejum ou adiponectina, quando avaliados isoladamente.
Esses achados contrastam com estudos observacionais que costumam mostrar menor risco de diabetes em consumidores de café; a revisão sugere que esses benefícios observacionais podem refletir principalmente confusão residual ou outros fatores de estilo de vida, e não um efeito causal direto do café.
6. Doenças autoimunes, articulares e gota
Nos desfechos imunológicos e articulares, os resultados foram:
- Artrite reumatoide: em conjunto, a evidência aponta para maior risco com maior consumo habitual de café, classificado como “provável” em uma análise com múltiplas coortes; outro estudo menor não confirmou essa associação, mas não pôde ser combinado diretamente por diferença de unidades.
- Osteoartrite: vários estudos em UK Biobank mostraram associação provável entre consumo de café e maior risco de osteoartrite, sobretudo de joelho; para quadril os resultados foram menos consistentes.
- Esclerose múltipla e lúpus eritematoso sistêmico: não houve evidência consistente de associação.
- Fraturas e densidade mineral óssea: não foi identificado efeito claro do café sobre risco de fratura ou densidade mineral óssea em diferentes sítios.
- Gota: a meta-análise inicial sugeriu menor risco de gota com maior consumo de café, mas análises de sensibilidade (MR-PRESSO) mostraram que o resultado dependia fortemente de variantes genéticas pleiotrópicas. Quando essas variantes foram removidas, o sinal de proteção desapareceu em coortes europeias, permanecendo com menor precisão em coorte japonesa. Os autores consideram esses achados como não conclusivos.
7. Fígado, vesícula biliar e rins
Para fígado, vesícula e rins, a revisão encontrou alguns potenciais benefícios:
- Esteatose hepática não alcoólica (NAFLD): há sinal de associação protetora, embora ainda com limitações metodológicas.
- Doença da vesícula biliar: estudos de RM, especialmente quando se consideram apenas casos sintomáticos, sugerem menor risco de doença calculosa da vesícula em consumidores habituais de café, sobretudo após ajuste para IMC e tabagismo.
- Doença renal crônica e função renal:
- maior consumo de café esteve associado a menor risco de doença renal crônica,
- taxa de filtração glomerular estimada mais alta,
- menores níveis de albuminúria
- e menor risco de cálculo renal.
Essas associações foram classificadas como de evidência provável, após exclusão de variantes possivelmente pleiotrópicas.
8. Olhos, audição e outros desfechos
Resultados adicionais:
- Glaucoma primário de ângulo aberto: associação provável entre maior consumo de café e maior risco de glaucoma.
- Catarata senil: sinal de associação adversa, sugerindo maior risco de catarata com maior consumo de café, embora com limitações de robustez.
- Pressão intraocular: não houve associação clara.
- Zumbido (tinnitus): um estudo sugeriu menor risco de zumbido em quem teria maior consumo de café segundo o perfil genético.
9. Longevidade e mortalidade
Apesar de a literatura observacional sugerir que beber café se relaciona a menor mortalidade geral e cardiovascular, os estudos de RM incluídos na revisão mostraram:
- Sem efeito consistente do consumo de café sobre mortalidade geral, mortalidade cardiovascular ou mortalidade por câncer.
- Nenhuma associação clara com longevidade (duração da vida).
Limitações importantes apontadas pelos autores
A revisão destaca diversos pontos que precisam ser considerados ao interpretar os resultados:
- Populações predominantemente europeias: muitos estudos usam UK Biobank e consórcios europeus, limitando a generalização para outras etnias e países de baixa e média renda.
- Pleiotropia das variantes genéticas: várias variantes associadas ao consumo de café também se ligam a lipídios, obesidade, pressão arterial e outros comportamentos (como álcool e tabagismo), o que exige análises de sensibilidade complexas e, em alguns casos, reduz a força do instrumento.
- Efeitos avaliados apenas como lineares e de consumo habitual moderado: os instrumentos genéticos captam diferenças modestas em consumo médio (por exemplo, 1–3 xícaras/dia) ao longo da vida, e não permitem concluir sobre efeitos de ingestões extremas ou picos agudos de cafeína.
- Subjetividade na avaliação GRADE: embora tenham sido usados checklists para reduzir variação entre avaliadores, a classificação de certeza de evidência carrega algum grau de julgamento.
- Vários desfechos com baixo poder estatístico: para doenças raras, mesmo grandes coortes podem não ter casos suficientes para detectar efeitos pequenos.
Conclusão da revisão em linguagem acessível
Reunindo todo o conjunto de evidências genéticas, os autores concluem que:
- Os supostos benefícios amplos do café observados em muitos estudos tradicionais não são confirmados quando se usam métodos de randomização mendeliana.
- Há alguns sinais de benefício em desfechos específicos, como menor risco de enxaqueca, de alguns tipos de doença renal e de cálculos biliares e renais.
- Por outro lado, aparecem sinais de risco aumentado para determinados problemas, como aumento de LDL-colesterol e ApoB, possível aumento de risco de Alzheimer, câncer de esôfago, diabetes tipo 2, osteoartrite, artrite reumatoide, glaucoma e alterações de volume de substância cinzenta cerebral.
- Em conjunto, os dados disponíveis sugerem que consumo habitual moderado de café, em torno de 1 a 3 xícaras por dia, parece globalmente seguro, sem evidência genética de grandes prejuízos para a maioria dos desfechos avaliados, mas também sem comprovação de que seja um “protetor universal” da saúde.
Os autores reforçam a necessidade de:
- Novos estudos de RM em populações não europeias.
- Melhores instrumentos para distinguir efeito do café em si, da cafeína e de outras bebidas.
- Ferramentas mais padronizadas de avaliação da qualidade metodológica em revisões sistemáticas de RM.
