Dieta com pouco carboidrato pode reduzir o tumor, mas influenciar o risco de metástase no pulmão

Um leitor acostumado a ouvir que “câncer gosta de açúcar” pode esperar uma conclusão linear: se a glicose cai, o câncer perde força. O estudo publicado na Cell preserva uma parte dessa lógica, mas adiciona uma camada que costuma ficar fora do debate público: crescimento do tumor primário e risco de metástase não são o mesmo fenômeno. Em modelos experimentais, a restrição de glicose foi associada a menor crescimento do tumor principal, porém a um pulmão mais permissivo à metástase, por mudanças específicas na imunidade inata e por comunicação tumoral via exossomos.

O que o estudo realmente avaliou

O trabalho investigou, principalmente, mecanismos biológicos:

  • Em modelos animais, testou se uma dieta descrita como “baixo carboidrato” (LC) e/ou a redução experimental do metabolismo de glicose no tumor alterariam a formação de um nicho pré-metastático no pulmão.
  • Em CHC (carcinoma hepatocelular) e em análises com dados humanos, explorou associações entre “perfil de metabolismo de glicose” do tumor e metástase, além de avaliar TRAIL exossomal no plasma como marcador para risco de metástase pulmonar pós-operatória.

O eixo central do estudo foi imunológico: macrófagos e células NK no pulmão.

O achado central

Nos modelos apresentados, a intervenção que gerou “baixa glicose” produziu um paradoxo:

  • Tumor primário: a privação de glicose ajudou a suprimir crescimento tumoral.
  • Metástase pulmonar: ao mesmo tempo, promoveu metástase no pulmão ao reduzir a vigilância imune por células NK, em um cenário de pulmão com maior domínio de macrófagos.

O estudo descreve que o pulmão, antes mesmo de receber células tumorais, passa a exibir características de “terreno preparado” (nicho pré-metastático), com exaustão de NK mediada por macrófagos.

O mecanismo proposto: exossomos, TRAIL e o freio imunológico PVR/TIGIT

Os autores propõem a seguinte cadeia:

  1. Baixa glicose induz estresse celular (incluindo estresse de retículo endoplasmático) e favorece o empacotamento de TRAIL em exossomos.
  2. Exossomos com TRAIL reprogramam macrófagos no pulmão, elevando PVR.
  3. Macrófagos PVR+ interagem com células NK por PVR–TIGIT, favorecendo exaustão de NK e reduzindo a defesa natural contra metástase.
  4. Quando o estudo bloqueia TIGIT, a metástase induzida por privação de glicose é prevenida e o efeito antitumoral local é preservado/fortalecido no modelo.

Esse detalhe é importante porque mostra que, no modelo, a parte “metastática” do problema foi tratável por via imunológica, não apenas por dieta.

Limitações do estudo (por que ele não permite conclusões diretas sobre dieta carnívora ou cetogênica em humanos)

1) “LC” no artigo não é sinônimo de dieta cetogênica (nem de carnívora)

O estudo usa o termo “low-carbohydrate”, mas a dieta experimental descrita como LC não é a dieta cetogênica clássica e não representa o que muitas pessoas chamariam de “cetose sustentada” (e muito menos um padrão carnívoro). Isso limita extrapolações automáticas do tipo “logo, cetogênica/carnívora aumenta metástase”.

2) O efeito central foi demonstrado em modelos experimentais e com foco no pulmão

A força do estudo está em mecanismo, principalmente em animais, e em um órgão-alvo específico (pulmão). Isso é altamente informativo para pesquisa, mas não substitui ensaios clínicos randomizados que comparem padrões alimentares e desfechos de metástase em pessoas.

3) A parte humana não é “ensaio de dieta”

Os achados em humanos envolvem associação e biomarcador (TRAIL exossomal), não um teste controlado de dieta cetogênica/carnívora em pacientes.

4) O alerta discutido no artigo é uma preocupação derivada dos dados, não uma regra clínica estabelecida

Quando o artigo levanta preocupações sobre restrição de carboidratos em cenários de tumor não detectado, isso deve ser lido como interpretação do conjunto de evidências do estudo, e não como recomendação clínica universal já validada por ensaios dietéticos em humanos.

Então isso “derruba” a estratégia de baixo carboidrato em câncer?

Não. O estudo não invalida o campo. Ele torna o campo mais exigente.

A principal contribuição é mostrar que o mesmo tipo de intervenção metabólica pode ter efeitos diferentes dependendo do desfecho observado:

  • reduzir crescimento do tumor primário não garante reduzir risco de metástase;
  • órgãos diferentes podem responder com microambientes imunes diferentes;
  • em alguns cenários, pode fazer sentido combinar estratégia metabólica com alvos imunes (como TIGIT), mas isso precisa de validação clínica.

Essa visão é coerente com a realidade da oncologia: “câncer” não é uma doença única.

Evidência clínica em humanos para dietas cetogênicas/baixo carboidrato: o que existe e o que não existe

A literatura clínica inclui ensaios controlados em alguns cânceres, além de revisões e meta-análises. O retrato geral é: viabilidade e efeitos metabólicos aparecem com consistência, enquanto benefícios em desfechos oncológicos duros (progressão/sobrevida) variam muito e, em vários contextos, permanecem incertos.

Exemplos de ensaios clínicos e sínteses (alto valor para entender o “estado da evidência”)

  • Glioblastoma recorrente (ERGO): mostrou viabilidade e segurança, mas concluiu que, como agente único, a dieta provavelmente não teve atividade clínica significativa naquele cenário. PubMed: 24728273. (PubMed)
  • Gliomas malignos recorrentes (ERGO2, randomizado): induziu cetose e reduziu glicose em muitos participantes, foi viável, mas não aumentou a eficácia da reirradiação no esquema curto testado. PubMed: 32619561. (PubMed)
  • Câncer de mama (ensaio randomizado com KD baseada em MCT durante quimioterapia): relatou melhora de parâmetros metabólicos e composição corporal; desfechos de sobrevida foram explorados, mas esse tipo de resultado precisa ser interpretado no contexto do desenho e replicação. PubMed: 31496287. (PubMed)
  • Ovário/endométrio (randomizados): demonstraram redução de gordura central e insulina com preservação relativa de massa magra; outros trabalhos do mesmo conjunto avaliaram aceitabilidade e qualidade de vida. PubMed: 30137481; PubMed: 31352797; PubMed: 30200193. (PubMed)
  • Meta-análises em pacientes com câncer: em conjunto, apontam redução de peso e massa gorda em ensaios controlados, mas destacam limitações como duração curta e heterogeneidade, o que impede conclusões fortes sobre desfechos oncológicos em geral. PubMed: 36110060; PubMed: 36235844. (PubMed)

Síntese: existem sinais e contextos promissores, mas a evidência não sustenta uma regra universal de eficácia para todos os cânceres e todas as fases. Isso é compatível com a mensagem do estudo da Cell: a biologia muda conforme o tipo de tumor e o caminho da metástase.

Relatos de casos do grupo Paleomedicina (PKD) em câncer

Os relatos e séries de casos do grupo Paleomedicina/PKD são frequentemente citados porque descrevem intervenções muito específicas (padrões com predominância de alimentos de origem animal e restrição intensa de carboidratos) em casos individuais. É importante manter o enquadramento correto: relato de caso não prova causalidade, mas pode documentar trajetórias clínicas relevantes e gerar hipóteses.

A lista abaixo reúne exemplos com acesso público:

  • Tumor recidivado do brônquio principal descrito como manejado com PKD (com histórico de quimioterapia no início do caso): Paleomedicina – Bronchial tumor. (paleomedicina.com)
  • Cessação de recorrência de neoplasia intraepitelial cervical (CIN) com PKD (relato de caso): JCRT 2018 – DOI: 10.12691/jcrt-6-1-1. (pubs.sciepub.com)
  • Progressão interrompida de tumor do palato mole por 20 meses com PKD (relato de caso): AJMCR 2016 – DOI: 10.12691/ajmcr-4-8-8. (pubs.sciepub.com)
  • Câncer retal com seguimento de 24 meses, com período descrito como terapia isolada após radioterapia: AJMCR 2017 – DOI: 10.12691/ajmcr-5-8-3. (pubs.sciepub.com)

Esses exemplos não anulam as preocupações do estudo da Cell. Eles mostram, na prática clínica individual, que há cenários em que intervenções metabólicas foram aplicadas com relatos favoráveis, ao mesmo tempo em que a ciência mecanística alerta que o caminho da metástase pode envolver efeitos imunes inesperados, especialmente em certos órgãos e certos contextos biológicos.

Conclusão: o estudo não enfraquece o debate; ele o amadurece

A leitura mais responsável do artigo da Cell é que ele não “condena” dietas de baixo carboidrato como estratégia. Ele demonstra que metástase é uma etapa com regras próprias, e que o tumor pode alterar órgãos distantes por sinais transportados em exossomos, remodelando macrófagos e reduzindo a ação de NK no pulmão.

Para quem acompanha o tema com esperança, esse tipo de achado não precisa ser lido como derrota. Ele pode ser lido como um passo de maturidade: menos simplificação, mais precisão. Em vez de uma promessa única para “câncer” como categoria, o caminho científico aponta para decisões mais específicas: tipo de tumor, estágio, risco de metástase, órgão-alvo e combinação com terapias (inclusive imunológicas) quando indicado.

Fonte: https://doi.org/10.1016/j.cell.2025.06.027

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