Há alguns anos se sabe que medicamentos da classe das estatinas, usados para reduzir o LDL-colesterol (LDL-C), podem aumentar de forma modesta o número de novos casos de diabetes tipo 2 (DM2) em grandes estudos clínicos. Ainda assim, permanecia uma dúvida importante:
O maior risco de diabetes vem principalmente do remédio (estatina) ou do próprio fato de manter o LDL-colesterol muito baixo?
Para tentar responder a essa questão em um cenário de “vida real”, pesquisadores italianos analisaram dados de um grande banco de prontuários eletrônicos de atenção primária, em Nápoles, ao longo de vários anos. O trabalho foi publicado na revista Cardiovascular Diabetology.
Como o estudo foi feito
Os autores utilizaram o banco de dados da cooperativa de médicos de família COMEGEN, que reúne informações padronizadas de mais de 200 mil adultos atendidos no sistema público italiano. Desse universo, foram selecionados apenas os indivíduos que, no início do acompanhamento:
- tinham entre 18 e 90 anos;
- não tinham diagnóstico de diabetes tipo 2;
- não tinham doenças cardiovasculares estabelecidas (como infarto ou AVC);
- tinham dados laboratoriais completos, incluindo LDL-colesterol, glicemia de jejum e outros exames básicos;
- tinham registro de uso ou não de estatinas.
Após aplicar os critérios de inclusão e exclusão, a coorte final ficou com 13.674 participantes. A média de idade era de 62 anos, cerca de 58% eram homens e aproximadamente 52% estavam em uso de estatinas no início do estudo. O LDL-colesterol médio era de 105 mg/dL.
Os indivíduos foram acompanhados por um período mediano de 71,6 meses (cerca de seis anos). Durante esse tempo, os prontuários eram atualizados rotineiramente pelos médicos de família com:
- novos diagnósticos;
- resultados de exames;
- internações;
- receitas de medicamentos.
Como foi definido o novo diagnóstico de diabetes tipo 2
Alguém era classificado como novo caso de DM2 se apresentasse pelo menos um dos seguintes critérios, de forma registrada no sistema:
- duas ou mais glicemias de jejum ≥ 126 mg/dL;
- ou uma hemoglobina glicada (HbA1c) ≥ 6,5%;
- ou prescrição de medicamentos para diabetes por mais de 30 dias.
Casos de diabetes tipo 1 e outros tipos específicos foram excluídos.
Divisão por faixas de LDL-colesterol
Para entender melhor o comportamento do risco de diabetes em diferentes níveis de LDL-C, os pesquisadores dividiram os participantes em quatro grupos (quartis):
- LDL-C baixo: < 84 mg/dL
- LDL-C médio: 84 a < 107 mg/dL
- LDL-C alto: 107 a < 131 mg/dL
- LDL-C muito alto: ≥ 131 mg/dL
O grupo com LDL-C mais baixo ( < 84 mg/dL ) tinha, em média:
- pessoas mais idosas;
- maior índice de massa corporal;
- mais hipertensos;
- maior uso de estatinas.
Ou seja, não eram necessariamente indivíduos “mais saudáveis” — apenas tinham LDL-C mais baixo, em boa parte por causa do tratamento.
O que aconteceu ao longo dos seis anos
Durante o acompanhamento, 1.819 pessoas (13% da amostra) desenvolveram diabetes tipo 2. Quando os autores analisaram a relação entre LDL-colesterol e ocorrência de DM2, ajustando para idade, sexo, IMC, glicemia de jejum, creatinina e hipertensão, observaram um padrão consistente:
Quanto mais baixo o LDL-colesterol, maior o risco de desenvolver diabetes tipo 2.
Taxas de diabetes por grupo de LDL-colesterol
As taxas de novos casos de DM2, em número de casos por 1.000 pessoas-ano, foram:
- LDL-C < 84 mg/dL: 27,6 casos / 1.000 pessoas-ano
- LDL-C 84–107 mg/dL: 17,4 casos / 1.000 pessoas-ano
- LDL-C 107–131 mg/dL: 13,5 casos / 1.000 pessoas-ano
- LDL-C ≥ 131 mg/dL: 8,4 casos / 1.000 pessoas-ano
Em outras palavras, o grupo com LDL-C mais baixo teve a maior incidência de diabetes, e o grupo com LDL-C mais alto teve a menor incidência.
Quando comparados ao grupo com LDL-C < 84 mg/dL, os demais grupos apresentaram, após ajuste estatístico, risco progressivamente menor de diabetes tipo 2:
- 84–107 mg/dL: risco 22% menor;
- 107–131 mg/dL: risco 35% menor;
- ≥ 131 mg/dL: risco cerca de 63% menor.
E o papel das estatinas?
As estatinas também foram avaliadas. No conjunto total da coorte:
- 20% dos usuários de estatina desenvolveram DM2;
- 6% dos não usuários desenvolveram DM2.
Após ajuste para idade, IMC, glicemia e outros fatores, o uso de estatina continuou associado a maior risco de diabetes tipo 2. Ou seja, estatina, por si, apareceu como um fator independente de aumento de risco.
No entanto, os autores foram além e analisaram se o efeito da estatina mudava em cada faixa de LDL-colesterol. O resultado foi mais sutil:
- Em todas as faixas de LDL-C, quem usava estatina tinha risco maior de diabetes do que quem não usava.
- Mas a diferença foi estatisticamente mais marcante no grupo com LDL-C muito alto (≥ 131 mg/dL), em que o uso de estatina se associou a um risco mais que duas vezes maior em comparação aos não usuários dentro da mesma faixa de LDL-C.
Nos grupos com LDL-C mais baixo, o uso de estatina ainda aumentava o risco, mas o efeito adicional da interação “LDL muito baixo + estatina” não se destacou da mesma forma.
Conclusão principal do estudo
Com base na análise desses 13.674 indivíduos, acompanhados por cerca de seis anos, os autores concluíram que:
Existe uma associação inversa forte entre LDL-colesterol e risco de diabetes tipo 2.
- Níveis mais baixos de LDL-C se associaram sistematicamente a risco mais alto de desenvolver DM2.
- Esse aumento de risco em níveis baixos de LDL-C parece ser, em grande parte, independente do uso de estatinas.
- Mesmo levando em conta quem usava ou não estatinas, o padrão geral de “LDL mais baixo → mais diabetes” se manteve.
- O uso de estatinas aumenta o risco de diabetes tipo 2 em todas as faixas de LDL-C, mas o impacto relativo foi mais intenso no grupo com LDL-C muito alto (≥ 131 mg/dL).
Por isso, os autores sugerem que o LDL-colesterol pode funcionar como um possível biomarcador de suscetibilidade ao diabetes tipo 2, e não apenas como marcador de risco cardiovascular.
O que o estudo não responde (limitações importantes)
Os próprios autores destacam limitações que precisam ser consideradas antes de qualquer interpretação prática:
Não se trata de um ensaio clínico, mas de um estudo observacional de prontuários.
- Isso significa que o estudo mostra associação, mas não prova que LDL baixo cause diabetes.
- Não há dados detalhados sobre dose e potência das estatinas.
- Como o efeito diabético parece ser dose-dependente em outros trabalhos, não é possível separar com precisão o impacto de doses mais altas ou medicamentos específicos.
- Não há informação sistemática sobre alimentação, atividade física e mudanças de estilo de vida ao longo do tempo.
- Esses fatores podem influenciar tanto o LDL-colesterol quanto o risco de diabetes.
- Não houve análise genética.
- Estudos prévios mostram que alguns genes podem reduzir o LDL-C ao mesmo tempo em que aumentam o risco de diabetes, o que pode explicar parte dos achados, mas isso não foi medido diretamente neste trabalho.
Mesmo com essas limitações, o fato de o banco de dados ser uma amostra ampla de atenção primária, com seguimento prolongado e registros clínicos rotineiros, confere relevância prática aos resultados.
Implicações cuidadosas para a prática clínica
O estudo não propõe mudanças diretas e imediatas nas diretrizes, mas aponta alguns pontos de atenção, sempre dentro do que foi efetivamente analisado:
- LDL muito baixo pode sinalizar maior vulnerabilidade ao diabetes tipo 2, especialmente em pessoas com outros fatores de risco (idade avançada, IMC elevado, hipertensão).
- Estatinas continuam eficazes para reduzir risco cardiovascular em cenários específicos, mas o acompanhamento da glicemia é importante, sobretudo em quem já apresenta risco aumentado para DM2.
- LDL-colesterol pode ser visto como mais um marcador a ser observado no contexto do risco metabólico global, não apenas como alvo isolado para prevenção de eventos cardiovasculares.
Essas interpretações mostram uma associação estatística robusta em um grande banco de dados, com a hipótese de que o LDL-C possa servir como biomarcador adicional de risco para diabetes tipo 2, independentemente do uso de estatinas.
