Padrões Alimentares Vegetarianos e Metabólitos Relacionados à Dieta Estão Associados à Função Renal na Coorte Adventist Health Study-2


Doença renal crônica (DRC) afeta centenas de milhões de pessoas e gera grande custo em saúde pública. Dieta é um dos pilares de prevenção e controle, e há crescente interesse em padrões alimentares com maior presença de alimentos de origem vegetal para proteção renal.

O artigo analisado, publicado no Journal of Renal Nutrition, investigou se diferentes padrões vegetarianos – em comparação com um padrão não vegetariano – se associam com marcadores de função renal e com um amplo painel de metabólitos sanguíneos na coorte Adventist Health Study-2 (AHS-2).

A pergunta central, na prática, é: os vegetarianos tiveram realmente alguma vantagem renal em relação aos não vegetarianos?

Como o estudo foi feito

População e classificação dos padrões alimentares

O estudo utilizou um subestudo de calibração do AHS-2, com 899 participantes que tinham dosagem de creatinina sérica. Esses participantes eram membros adventistas, em geral pouco fumantes e com baixo consumo de álcool, inclusive entre os não vegetarianos, o que reduz alguns fatores de confusão, mas também limita a generalização para a população em geral.

Os participantes foram classificados, com base em questionário de frequência alimentar validado, em cinco padrões:

  • Veganos: praticamente nunca consumiam ovos, laticínios, peixe ou outras carnes.
  • Lacto-ovo-vegetarianos: consumiam ovos e laticínios com alguma frequência, mas pouco ou nenhum peixe/carne.
  • Pesco-vegetarianos: consumiam peixe regularmente, mas pouco ou nenhum outro tipo de carne.
  • Semi-vegetarianos: consumiam carne (incluindo peixe) menos de uma vez por semana.
  • Não vegetarianos: consumiam carne (incluindo peixe) mais de uma vez por semana.

Estudos prévios da mesma coorte mostraram que esses grupos diferem de forma consistente nas quantidades de alimentos vegetais e de origem animal consumidos.

Medidas de função renal e metabolômica

  • Creatinina sérica foi medida por método enzimático padronizado.
  • A partir da creatinina, foi estimada a taxa de filtração glomerular (eGFR) por uma equação “race-free”, seguindo as recomendações KDIGO para estágios de DRC.
  • Um subconjunto de 139 participantes teve ainda análise metabolômica “untargeted”, com centenas de metabólitos (aminoácidos, lipídios, compostos derivados da microbiota, entre outros).

Modelos de regressão linear ajustaram para raça, sexo, idade, escolaridade, tabagismo, álcool, índice de massa corporal (IMC), hipertensão, diabetes, doença cardiovascular e câncer, buscando isolar melhor a associação entre padrão alimentar e função renal.

O que o estudo encontrou nos marcadores clássicos (creatinina e eGFR)

Diferenças brutas entre os grupos

Na tabela descritiva (sem ajustes), as médias foram:

  • Creatinina sérica: não houve diferença estatisticamente significativa entre os grupos (P = 0,23).
  • eGFR média: também não houve diferença significativa entre os padrões alimentares (P = 0,62).

A prevalência de DRC em estágios mais avançados foi semelhante:

  • DRC estágio > 2: cerca de 46–62% nos diferentes grupos, sem diferença significativa (P = 0,43).
  • DRC estágio > 3: em torno de 4–12%, também sem diferença significativa (P = 0,45).

Os próprios autores ressaltam que a coorte é predominantemente idosa (média 66,7 anos) e que grande parte dos casos em “estágio 2” provavelmente reflete declínio fisiológico da função renal relacionado à idade, e não doença renal clínica avançada.

Diferenças após ajuste (regressão)

Ao avaliar a associação entre padrão alimentar e eGFR em modelos ajustados, surgem diferenças estatisticamente significativas:

  • No modelo totalmente ajustado (Modelo 4):

    • Veganos apresentaram eGFR em média 4,0 mL/min/1,73 m² mais alta que não vegetarianos (P = 0,043).
    • Pesco-vegetarianos apresentaram eGFR em média 3,6 mL/min/1,73 m² mais alta que não vegetarianos (P = 0,038).
    • Lacto-ovo-vegetarianos e semi-vegetarianos não mostraram associações significativas com eGFR.

Quando todos os vegetarianos (exceto semi-vegetarianos) foram agrupados, a diferença para eGFR foi menor (≈2 mL/min/1,73 m²) e com significância limítrofe em alguns modelos.

Em análises estratificadas por idade, raça e sexo, a associação positiva entre padrões vegano/pesco-vegetariano e eGFR foi mais clara em participantes brancos e em alguns subgrupos etários, mas deixou de ser estatisticamente robusta em parte das análises estratificadas, em função do menor tamanho amostral.

Resumo dessa parte:

  • Em médias brutas, os grupos não diferiam de forma importante em creatinina ou eGFR.
  • Após ajustes para idade, raça, IMC, comorbidades e estilo de vida, veganos e pesco-vegetarianos apresentaram eGFR estatisticamente mais alta, mas com diferença absoluta pequena (da ordem de poucos mL/min/1,73 m²).

O que os metabólitos mostram

O estudo explorou também como o padrão alimentar se relaciona com perfis de metabólitos associados à creatinina e à DRC:

  • Ao comparar participantes com creatinina alta (percentil 90) versus baixa (percentil 10), foram identificados 296 metabólitos associados positivamente à creatinina, muitos deles lipídios e aminoácidos.
  • Em contraste, vegetarianos – especialmente veganos – apresentaram níveis mais baixos de diversas subclasses de lipídios (ceramidas, esfingomielinas, plasmalogênios), acilcarnitinas e aminoácidos de cadeia ramificada, que em outros estudos se associam a resistência à insulina, inflamação, progressão de DRC e risco cardiovascular.
  • Metabólitos considerados potenciais toxinas urêmicas, como derivados de triptofano (p.ex., p-cresol sulfato) e compostos de ureia/arginina/prolina, foram mais baixos em vegetarianos, embora associados positivamente à creatinina.

Os autores interpretam esses achados como consistentes com um perfil metabólico menos propenso à inflamação, disfunção mitocondrial e acúmulo de toxinas urêmicas em padrões vegetarianos, o que poderia contribuir para melhor função renal.

Como os autores interpretam a “vantagem” dos vegetarianos

Na discussão, os autores afirmam que:

  • Padrões vegano e pesco-vegetariano estiveram associados a eGFR mais alta e a perfis metabolômicos sugerindo menor acúmulo de lipídios pró-inflamatórios e aminoácidos relacionados à DRC.
  • Eles consideram que essa associação provavelmente reflete efeitos renoprotetores de alimentos vegetais ricos em nutrientes, e não apenas diferenças de massa muscular, embora reconheçam que não havia medidas diretas de composição corporal.
  • Em análises anteriores da mesma coorte AHS-2, padrões vegetarianos estiveram associados a:
    • Menor incidência de hipertensão e diabetes, que são fatores de risco importantes para DRC.
    • Menor mortalidade por falência renal, com hazard ratio de 0,52 (IC 95%: 0,38–0,70) para vegetarianos em comparação com não vegetarianos.

Esses resultados são colocados em contexto com meta-análises que mostram que padrões alimentares considerados “saudáveis” – com maior ingestão de frutas, vegetais, legumes, nozes, grãos integrais e menor ingestão de certos produtos de origem animal ultraprocessados – se associam a risco 30% menor de DRC incidente e menor risco de albuminúria.

Revisões clínicas recentes sobre dietas à base de plantas em DRC também reforçam que a substituição parcial de proteína animal por proteína vegetal pode reduzir carga de fósforo, produção de toxinas urêmicas e acidose metabólica, em cenários cuidadosamente monitorados.

Limitações importantes: o que impede conclusões definitivas

O próprio artigo destaca diversos pontos que exigem cautela na interpretação dos resultados:

  • Desenho transversal

    • Creatinina e eGFR foram medidos em um momento único.
    • Não é possível determinar se o padrão alimentar causou melhor função renal, ou se pessoas com melhor função renal tendem a manter certos padrões alimentares.
  • Uso de creatinina para estimar eGFR
    • A creatinina depende não só da filtração renal, mas também de massa muscular e ingestão de proteína.
    • Vegetarianos, especialmente veganos, tendem a ter IMC menor; o estudo ajustou para IMC, mas não dispunha de medidas diretas de composição corporal (massa magra).
    • Os autores reconhecem que equações envolvendo cistatina C ou combinações de marcadores poderiam reduzir o impacto de fatores não relacionados à filtração glomerular.
  • Tamanho amostral da subcoorte metabolômica
    • O subconjunto de 139 pessoas foi suficiente para diferenças mais marcantes, mas limitado para detectar associações sutis.
  • Generalização limitada
    • Adventistas, mesmo não vegetarianos, têm estilo de vida mais saudável e menor consumo de carne do que a população geral. Assim, diferenças entre “vegetarianos” e “não vegetarianos” no AHS-2 são menores do que em outros contextos.
  • Magnitude clínica da diferença
    • Embora diferenças de 3–4 mL/min/1,73 m² em eGFR sejam estatisticamente significativas em modelos ajustados, todos os grupos apresentavam, em média, eGFR em faixa relativamente preservada, com distribuição semelhante de estágios de DRC mais avançados.
    • O estudo não avaliou diretamente se essa diferença se traduz em desfechos “duros” adicionais (p.ex., progressão de DRC) além dos dados de mortalidade por falência renal já descritos em trabalhos prévios da mesma coorte.

Então, houve mesmo vantagem dos vegetarianos sobre os não vegetarianos?

Com base apenas nos dados e interpretações fornecidos pelos autores e nas referências citadas, é possível sintetizar da seguinte forma:

  • Vantagem estatística nos marcadores de função renal

    • Em modelos ajustados, veganos e pesco-vegetarianos apresentaram eGFR modestamente mais alta e creatinina mais baixa em comparação a não vegetarianos.
    • Os perfis metabolômicos dos vegetarianos mostraram menor presença de lipídios pró-inflamatórios, aminoácidos de cadeia ramificada e toxinas urêmicas, o que está em linha com menor risco de progressão de DRC descrito em outros estudos.
  • Coerência com outros dados da mesma coorte e com meta-análises
    • O AHS-2 já havia mostrado menor incidência de hipertensão, diabetes e menor mortalidade por falência renal entre vegetarianos, reforçando a consistência do achado de melhor função renal média em padrões vegano e pesco-vegetariano.
    • Meta-análises de coortes indicam que padrões alimentares saudáveis, ricos em alimentos vegetais minimamente processados, associam-se a menor risco de DRC e albuminúria.
  • Limitações para afirmar benefício causal ou grande impacto clínico imediato
    • O desenho transversal não permite concluir causalidade.
    • A magnitude das diferenças em eGFR é pequena e ocorreu em uma população com função renal relativamente preservada e distribuição semelhante de estágios de DRC mais avançados.
    • A dependência exclusiva da creatinina (sem cistatina C) e a ausência de medidas diretas de massa muscular implicam que parte da diferença pode refletir características corporais e de ingestão proteica, e não apenas efeito direto da dieta sobre o rim.

À luz desses pontos, a conclusão estritamente baseada nas evidências apresentadas é:

  • Sim, houve uma vantagem estatística discreta para padrões vegano e pesco-vegetariano em relação ao padrão não vegetariano, tanto em eGFR quanto em perfis metabolômicos associados à DRC.
  • Essa vantagem é consistente com outros dados observacionais da mesma coorte e com meta-análises sobre padrões alimentares saudáveis e risco de DRC.
  • Contudo, pela natureza observacional e transversal do estudo e pelas limitações inerentes ao uso isolado de creatinina, não é possível afirmar de forma definitiva que o padrão vegetariano cause melhor função renal, nem quantificar com precisão o impacto clínico individual dessa diferença em eGFR.

Assim, o estudo apoia a ideia de que padrões alimentares mais centrados em alimentos vegetais minimamente processados podem estar associados a melhor saúde renal, mas a interpretação deve permanecer no campo de associações observacionais, e não de prova causal.

Fonte: https://doi.org/10.1053/j.jrn.2025.11.001

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