Efeitos de dietas contendo carne bovina em comparação com carne de aves sobre a função das células β pancreáticas e outros indicadores de saúde cardiometabólica em homens e mulheres com pré-diabetes: ensaio clínico randomizado cruzado


Ao longo dos últimos anos, estudos observacionais associaram maior consumo de carne vermelha a maior risco de desenvolver diabetes tipo 2, enquanto o consumo de aves muitas vezes aparece como neutro ou até ligeiramente favorável. No entanto, quando se analisam ensaios clínicos randomizados – que conseguem isolar melhor o efeito dos alimentos – essa relação não é tão clara.

O artigo publicado na revista Current Developments in Nutrition analisou especificamente se incluir carne bovina, em comparação com carne de aves, teria algum efeito negativo sobre a função das células β pancreáticas (as células que produzem insulina) e outros marcadores cardiometabólicos em adultos com pré-diabetes.

O foco principal foi responder a uma pergunta prática: substituir carne de aves por carne bovina, em quantidade relevante e diária, piora a função pancreática e os fatores de risco relacionados ao diabetes tipo 2 em pessoas com pré-diabetes?

Desenho do estudo: quem participou e o que foi comparado

O estudo foi um ensaio clínico randomizado, cruzado, conduzido em adultos com:

  • Idade entre 18 e 74 anos
  • Sobrepeso ou obesidade (IMC ≥ 25,0 e < 39,9 kg/m²)
  • Pré-diabetes, definido por glicemia de jejum entre 100–125 mg/dL ou HbA1c entre 5,7–6,4%

Foram inicialmente randomizados 29 participantes; 24 (17 homens e 7 mulheres) completaram o protocolo.

Cada participante passou por duas fases de 28 dias:

  1. Fase “carne bovina”
  2. Fase “carne de aves”

Entre essas fases, houve um período de “washout” de 28 dias, em que os participantes voltaram ao padrão alimentar habitual, sem os pratos fornecidos pelo estudo.

Durante cada fase de intervenção:

  • Os participantes recebiam duas refeições prontas por dia, totalizando cerca de 6–7 onças (aprox. 170–200 g) de carne cozida por dia, de:

    • Carne bovina não processada (na fase “beef”)
    • Carne de aves (na fase “poultry”)
  • Os pratos incluíam opções como fajitas, ensopado, hambúrguer, burrito e stir-fry, preparados por serviço de catering.
  • Eles eram orientados a:
    • Manter o restante da alimentação habitual
    • Evitar outras fontes de carne, aves, ovos e frutos do mar fora dos produtos do estudo
    • Manter peso corporal e nível de atividade física estáveis

A adesão foi muito alta: cerca de 99–100% das refeições fornecidas foram efetivamente consumidas, segundo devolução de embalagens e registros alimentares.

Avaliações metabólicas: como a função pancreática foi medida

Em três momentos – início do estudo, final da fase com carne bovina e final da fase com carne de aves – os participantes realizaram exames padronizados em jejum e após refeição mista padronizada.

Teste de refeição mista (MMTT)

Os participantes, após jejum noturno, consumiam em 15 minutos uma refeição padrão:

  • Bagel branco
  • Cream cheese
  • Pêssego em pedaços
  • Leite (2%)
  • Água ou chá simples

Essa refeição fornecia cerca de 509 kcal, com 60% de carboidratos, 25% de gordura e 15% de proteína.

Foram coletadas amostras de sangue:

  • Antes da refeição (−15 minutos)
  • 30, 60, 120 e 180 minutos após o início da refeição

Nessas amostras foram medidos:

  • Glicose
  • Insulina
  • C-peptídeo
  • Glucagon
  • GLP-1 (glucagon-like peptide-1)
  • GIP (glucose-dependent insulinotropic polypeptide)

Além disso, em jejum, também foram avaliados:

  • Perfil lipídico: colesterol total, LDL, HDL, colesterol não-HDL e triglicerídeos
  • Marcadores inflamatórios: proteína C-reativa ultrassensível (PCR-us), IL-6, TNF-α e fibrinogênio

Variáveis principais: sensibilidade à insulina e função de células β

A função das células β pancreáticas e a sensibilidade à insulina foram avaliadas com diferentes índices já estabelecidos na literatura:

  • Desfecho primário

    • Razão entre a área sob a curva incremental (iAUC) de C-peptídeo e a iAUC de glicose durante 0–180 minutos após a refeição (C-peptídeo iAUC₀–₁₈₀ / glicose iAUC₀–₁₈₀).
  • Desfechos secundários
    • Glicose, insulina e C-peptídeo em jejum e pós-prandiais (áreas sob a curva totais e incrementais)
    • Índices de sensibilidade/resistência à insulina:
      • MISI (Matsuda Insulin Sensitivity Index)
      • HOMA-IR
    • Índices de função de células β:
      • HOMA-β (com insulina e com C-peptídeo)
      • Índice de disposição (disposition index), combinando sensibilidade à insulina e resposta secretória

Os gráficos de glicose, insulina e C-peptídeo ao longo de 180 minutos, apresentados na Figura 3 (página 7), mostram curvas praticamente sobrepostas para as fases com carne bovina e com carne de aves, tanto em termos de pico quanto de retorno aos níveis mais próximos do basal.

Composição da dieta durante as fases com carne bovina e com aves

A análise dos registros alimentares de 3 dias em cada fase mostrou que, na média, a ingestão energética total foi semelhante entre as duas condições (cerca de 2.080 kcal/dia). Porém, houve diferenças esperadas na distribuição de macronutrientes:

  • Fase carne de aves

    • Maior proporção de energia proveniente de carboidratos
    • Maior proporção de energia proveniente de proteínas
  • Fase carne bovina
    • Maior proporção de energia proveniente de gordura total
    • Maior proporção de energia proveniente de gorduras saturadas
    • Leve aumento na porcentagem de energia proveniente de açúcares

Apesar dessas diferenças na composição da dieta, os desfechos metabólicos avaliados não diferiram de forma estatisticamente significativa entre as duas fases.

Principais resultados: carne bovina versus carne de aves

1. Função de células β pancreáticas

O desfecho primário – razão iAUC C-peptídeo₀–₁₈₀ / iAUC glicose₀–₁₈₀ – não apresentou diferença significativa entre as fases com carne bovina e com carne de aves.

Outros índices de função de células β, como:

  • HOMA-β
  • Índice de disposição baseado em insulina
  • Índice de disposição baseado em C-peptídeo

também não mostraram diferenças significativas entre as duas condições.

Em uma análise de protocolo mais restrita, houve diferença estatística apenas em um parâmetro isolado (tAUC₀–₁₂₀ de C-peptídeo, ligeiramente menor na fase com carne bovina), mas sem um padrão consistente nos demais índices, o que limita a interpretação clínica desse achado.

2. Glicose e insulina: jejum e pós-prandiais

  • Glicemia de jejum: valores semelhantes após 28 dias de carne bovina e após 28 dias de carne de aves.
  • Resposta glicêmica pós-prandial (área sob a curva): sem diferença significativa entre as dietas.
  • Insulina em jejum e pós-prandial (tanto tAUC quanto iAUC): também sem diferenças significativas.

Os índices MISI e HOMA-IR confirmaram que a sensibilidade/resistência à insulina permaneceu equivalente nas duas intervenções.

3. Hormônios glucorregulatórios (GLP-1, GIP, glucagon)

As respostas de:

  • GLP-1
  • GIP
  • Glucagon

tanto em jejum quanto após a refeição padrão, não diferiram entre a fase com carne bovina e a fase com carne de aves.

4. Perfil lipídico

Ao final de cada fase, não foram observadas diferenças significativas entre as dietas contendo carne bovina ou carne de aves para:

  • Colesterol total
  • LDL-colesterol
  • HDL-colesterol
  • Colesterol não-HDL
  • Triglicerídeos

Ou seja, em 28 dias, consumir carne bovina não piorou o perfil lipídico em comparação com carne de aves dentro do contexto estudado.

5. Marcadores inflamatórios

Os marcadores inflamatórios avaliados – PCR-us, IL-6, TNF-α e fibrinogênio – não apresentaram diferenças significativas entre as fases com carne bovina e com carne de aves.

Relação com outras evidências citadas pelos autores

Os autores situam esses achados dentro de um conjunto mais amplo de evidências provenientes de ensaios clínicos:

  • Revisões sistemáticas e meta-análises de ensaios clínicos com carne vermelha não encontraram efeitos consistentes sobre:

    • Glicemia de jejum
    • Insulina de jejum
    • Sensibilidade ou resistência à insulina
    • Marcadores inflamatórios
  • Subanálises que compararam carne vermelha com outras fontes de proteína animal, como aves, também não identificaram diferenças relevantes nos desfechos cardiometabólicos.

O presente ensaio acrescenta um componente importante: medidas detalhadas de função de células β pancreáticas e respostas hormonais pós-prandiais em indivíduos com pré-diabetes, mostrando ausência de impacto desfavorável da carne bovina não processada em comparação com carne de aves, no curto prazo.

Forças e limitações do estudo

Pontos fortes

  • Desenho cruzado: cada participante serviu como próprio controle, o que reduz a variabilidade interindividual.
  • Alta adesão aos alimentos fornecidos (cerca de 99–100%).
  • Avaliação abrangente de:
    • Função de células β
    • Sensibilidade à insulina
    • Glicemia em jejum e pós-prandial
    • Perfis lipídicos
    • Marcadores inflamatórios
    • Hormônios intestinais (GLP-1, GIP) e glucagon

Limitações reconhecidas pelos autores

  • Duração relativamente curta: 28 dias em cada fase. Efeitos mais sutis poderiam surgir apenas em intervenções de longo prazo.
  • Tamanho de amostra pequeno (24 participantes), predominantemente homens, todos com pré-diabetes; isso limita a generalização para:
    • População geral sem alterações glicêmicas
    • Pessoas com diabetes tipo 2 já estabelecido
    • Amostras com mais mulheres
  • Estudo não cego: tanto participantes quanto equipe sabiam qual tipo de carne estava sendo consumida.
  • Ambiente de vida livre: embora as refeições principais fossem padronizadas, o restante da alimentação não foi rigidamente controlado.
  • Avaliação pontual da glicemia: não houve monitorização contínua de glicose, apenas resposta à refeição padrão e medidas em jejum.

Além disso, o financiamento veio da National Cattlemen’s Beef Association, ligada à cadeia produtiva da carne bovina. Os autores informam que o patrocinador não participou da coleta, análise ou interpretação dos dados, nem da decisão de publicação, mas essa informação é relevante para a leitura crítica do estudo.

Conclusão: o que o estudo efetivamente mostra

Dentro das condições específicas deste ensaio clínico randomizado cruzado, com 28 dias de intervenção em cada fase, os autores concluem que:

  • Consumir carne bovina não processada, em quantidade equivalente à carne de aves (6–7 oz/dia), não prejudicou:

    • A função das células β pancreáticas
    • A sensibilidade à insulina
    • A glicemia de jejum ou pós-prandial
    • O perfil lipídico
    • Os marcadores inflamatórios avaliados

em adultos com sobrepeso/obesidade e pré-diabetes.

Os resultados se somam a outros ensaios clínicos que sugerem que a carne bovina não processada pode ser incluída em um padrão alimentar considerado globalmente saudável sem, por si só, piorar os principais fatores de risco cardiometabólico, ao menos no curto prazo e no perfil de participantes estudado. Ao mesmo tempo, os autores destacam a necessidade de ensaios de maior duração e com amostras mais amplas e diversas, para esclarecer eventuais efeitos em longo prazo e em outros grupos de população.

Fonte: https://doi.org/10.1016/j.cdnut.2025.107589

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