Apollinaire Bouchardat (1806–1886): fundador da diabetologia moderna


1. Por que Bouchardat é chamado de “fundador da diabetologia moderna”

No século XIX, o diabetes já era reconhecido há séculos pela sede intensa, urina abundante e presença de açúcar na urina, mas ainda não havia um tratamento sistemático e racional. Foi nesse cenário que Apollinaire Bouchardat se destacou.

O artigo publicado na revista Hormones em 2014 descreve Bouchardat como o fundador do campo da diabetologia, principalmente por três motivos centrais:

  • foi um dos primeiros a propor dietas específicas para tratar o diabetes,
  • deu grande importância à educação do paciente e à auto-monitorização,
  • e integrou conhecimentos de farmácia, química, fisiologia e higiene em uma abordagem clínica coerente para a doença.

Antes da descoberta da insulina, em 1921, esse tipo de proposta era praticamente o único caminho para tentar melhorar a vida dos pacientes com diabetes mellitus.

2. Vida, formação e carreira

Apollinaire Bouchardat nasceu em 23 de julho de 1806, em L’Isle-sur-Serein, na região da Borgonha, França. Ainda criança, teve contato com a química por meio do pai, Jean-Baptiste Bouchardat, que era proprietário de uma tinturaria. Mais tarde, foi treinado em farmácia pelo tio, Alphonse Bouchardat, ao mesmo tempo em que concluía seus estudos de medicina.

Ele ingressou na Escola de Farmácia de Paris e, em 1832, defendeu sua tese médica sobre cólera. Após isso, foi nomeado farmacêutico-chefe do hospital Hôtel-Dieu, em Paris, um dos centros hospitalares mais importantes do país. Em 1852, obteve a prestigiosa Cátedra de Higiene, passando a seguir uma carreira dupla, como farmacêutico e médico, sempre com forte ênfase em saúde pública e higiene.

Membro da Academia de Medicina desde 1850, Bouchardat chegou a presidir a instituição em 1866. Casou-se com Anne-Antoinette Malot, com quem teve dois filhos: Jean, que se tornou médico militar, e Gustave, que se tornou professor na Escola de Farmácia de Paris. Bouchardat faleceu em Paris em 7 de abril de 1886, aos 80 anos.

3. Um cientista multidisciplinar

O trabalho de Bouchardat não se restringiu ao diabetes. Ele atuou de forma ampla em:

  • Farmácia,
  • Biologia,
  • Química,
  • Toxicologia,
  • Higiene,
  • e até em aspectos de física.

Por suas contribuições laboratoriais, é considerado fundador da Bioquímica Clínica na França. Utilizando o polarímetro de Biot, mediu glicose na urina (glicosúria) e também quantificou substâncias tóxicas como estricnina, morfina, mercúrio, cobre e arsênico.

Entre suas obras, destacam-se:

  • Formulaire magistral (1840), que se tornou referência prática para médicos e farmacêuticos durante o século XIX;
  • tratados de higiene pública e privada;
  • manuais de química e física elementar, voltados tanto à formação científica quanto à prática clínica.

Esse conjunto mostra que sua atuação no diabetes estava inserida em uma visão mais ampla de saúde, nutrição e higiene.

4. O contexto do diabetes antes de Bouchardat

O artigo relembra que sinais de diabetes já haviam sido descritos por autores como Sushruta (século VI a.C.), Areteu da Capadócia (século II d.C.) e Avicena (980–1037), que salientavam a urina abundante e a sede intensa. Thomas Willis, em 1674, foi quem destacou de forma mais clara o sabor adocicado da urina. Mais tarde, Matthew Dobson demonstrou que essa doçura era causada pela presença de açúcar no sangue e na urina.

Com o avanço da química no fim do século XVIII e início do XIX, ficou mais claro que se tratava de um distúrbio metabólico ligado ao açúcar (glicose). Em 1797, John Rollo introduziu o termo “diabetes mellitus” e já propunha intervenções dietéticas, mas ainda de forma limitada e sem um sistema alimentar estruturado como o que Bouchardat viria a organizar depois.

5. A virada: da superalimentação ao controle dietético

No fim da década de 1850, o professor Pierre Adolphe Piorry recomendava que pessoas com diabetes consumissem grandes quantidades de açúcar. Um colega diabético que seguiu essa orientação acabou falecendo, o que ilustrou, na prática, o potencial desastre dessa estratégia. Mesmo assim, muitos médicos ainda insistiam em estimular o ganho de peso e o consumo elevado de alimentos, inclusive açúcares.

Gradualmente, alguns clínicos passaram a perceber que:

  • o excesso de alimento exigia um esforço adicional do organismo,
  • os carboidratos, em particular, pareciam agravar o quadro,
  • e uma alimentação mais restrita em carboidratos poderia ser mais adequada para o organismo com capacidade de absorção prejudicada.

É exatamente nesse momento histórico que a proposta de Bouchardat ganha destaque.

6. As observações de Bouchardat

Bouchardat rejeitou explicitamente o método de Piorry e formulou seu próprio esquema alimentar para pessoas com diabetes. Uma das bases da sua proposta surgiu de uma observação dramática: durante o cerco de Paris na Guerra Franco-Prussiana de 1870, houve racionamento de alimentos, e ele notou que seus pacientes diabéticos, submetidos à escassez, apresentavam redução da glicose na urina.

A partir daí, ele passou a:

  • experimentar o jejum periódico,
  • observar o impacto de diferentes quantidades de alimento sobre a glicosúria,
  • associar dieta mais restrita com atividade física, já que também percebia que o exercício aumentava a tolerância aos carboidratos em pessoas com diabetes.

A frase que sintetiza sua visão é dirigida a um paciente que pedia mais comida:

“Você deve ganhar seu pão com o suor do seu rosto.”

Ou seja, para ele, a alimentação deveria ser moderada e sempre acompanhada de movimento.

7. A “dieta de Bouchardat” para o diabetes

O ponto central do legado de Bouchardat está em seu livro De la glycosurie ou diabète sucré; son traitement hygiénique (1875), no qual ele reúne décadas de experiência clínica e descreve, em detalhes, uma dieta específica para pessoas com diabetes.

7.1. Princípios gerais

Alguns princípios gerais de tratamento descritos no artigo incluem:

  • Comer moderadamente e devagar, mastigando bem os alimentos.
  • Manter o volume de urina em 24 horas acima de 1,5 litro.
  • Beber o mínimo possível.
  • Fazer duas refeições ao dia (por volta das 10h e das 18h).
  • Evitar repouso, especialmente sono, logo após as refeições.
  • Realizar caminhadas ao ar livre após comer.
  • Deitar apenas 4 a 5 horas depois da última refeição.
  • Abster-se de fumar.

Trata-se de um regime que combina alimentação, atividade física e hábitos de vida, numa visão ampla de “tratamento higiênico” do diabetes.

7.2. Alimentos proibidos

Na lista de alimentos proibidos, Bouchardat inclui:

  • todos os amidos e açúcares em geral,
  • frutas e geleias,
  • todo tipo de pão,
  • raízes farináceas e adocicadas, como cenoura, nabo, rabanete doce e raízes semelhantes,
  • leguminosas como feijões, ervilhas, lentilhas, castanhas,
  • mel,
  • leite,
  • bebidas alcoólicas ricas em açúcar, como cerveja e cidra,
  • vinhos espumantes ou adoçados,
  • refrigerantes, águas gaseificadas adoçadas e outras bebidas doces,

Segundo Bouchardat, esses alimentos não eram adequadamente utilizados pelo organismo do diabético e ainda produziam açúcar na urina, agravando o quadro.

7.3. Alimentos permitidos

A lista de alimentos permitidos é extensa. O artigo destaca:

  • Carnes (boi, cordeiro, vitela) e embutidos, defumados ou salgados, servidos puros ou com azeite e ervas;
  • Peixes fritos ou em preparações com molho;
  • Queijos,
  • ovos e creme;
  • Gorduras animais e vegetais, usadas para substituir os carboidratos proibidos;
  • Pão de glúten, como alternativa ao pão comum (pão feito com farinha de trigo da qual se removia a maior parte do amido, concentrando o glúten — a fração proteica do trigo. Já o pão comum era feito com farinha de trigo integral ou refinada, rica em amido);
  • Vinhos antigos (brancos ou tintos), em quantidade limitada: cerca de 1 litro por dia para homens e meio litro para mulheres.

Ele ainda sugeria substituir o açúcar em café e chá por pequenas quantidades de rum, conhaque, kirsch, glicerina pura ou creme, sempre controlando a carga de carboidratos na alimentação.

8. Ferramentas de monitorização e interpretação da doença

Para acompanhar o efeito da dieta, Bouchardat utilizava métodos laboratoriais da época, como:

  • teste de fermentação,
  • polarímetro para medir a rotação óptica da glicose,
  • soluções de cobre para identificar glicose na urina.

Ele acreditava que o açúcar eliminado na urina era glicose e, com base nisso, tentou explicar o diabetes a partir da ideia de uma “diástase”, também conhecida como amilase, (um fermento/enzi­ma) presente no suco gástrico que transformaria amido em glicose de forma excessiva em certas condições patológicas. Essa hipótese não se confirmou posteriormente, mas ilustra o esforço em conectar digestão, metabolismo de amidos e hiperglicemia numa explicação única.

Mesmo com limitações teóricas, o resultado prático — o uso sistemático de dieta e monitorização da glicosúria — trouxe benefícios concretos a muitos pacientes, sobretudo numa época em que a fisiologia do diabetes ainda não era plenamente compreendida.

9. Legado para o tratamento do diabetes

O artigo conclui que o trabalho de Bouchardat, baseado em observação clínica rigorosa e uso intensivo de métodos laboratoriais disponíveis na época, contribuiu para melhorar a saúde de numerosos pacientes com diabetes. Suas iniciativas são descritas como marcadas por originalidade e inovação.

Depois dele, outros clínicos desenvolveram novas propostas dietéticas, como Carl von Noorden, Frederick Madison Allen e Wilhelm Falta, mas a ideia de que o diabetes poderia — e deveria — ser abordado por meio de um plano alimentar detalhado, associado a atividade física e acompanhamento sistemático da glicosúria, já havia sido claramente estabelecida por Bouchardat no século XIX.

Por isso, a literatura histórica o reconhece como o fundador da diabetologia moderna, um profissional que, muito antes da insulina, já organizava o cuidado ao diabetes em torno de dieta, higiene de vida e monitorização, com forte envolvimento do próprio paciente no controle da doença.

Fonte: https://doi.org/10.1007/BF03401345

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