Reduções da anemia nutricional por fortificação de alimentos entre mulheres em idade reprodutiva: revisão e meta-análise bayesiana


O artigo de Dorbu e colaboradores, publicado em Maternal & Child Nutrition, avaliou se a fortificação de alimentos básicos realmente reduz anemia em adolescentes e mulheres de 10 a 49 anos em diferentes países (Dorbu et al., 2025).

Foram incluídos 17 estudos que acompanharam populações expostas à fortificação de:

  • farinha de trigo
  • farinha de milho
  • arroz
  • óleo

Esses alimentos foram enriquecidos principalmente com ferro, ácido fólico e, em alguns casos, com misturas de vários micronutrientes. O objetivo era verificar a mudança na hemoglobina e na prevalência de anemia antes e depois da fortificação.

2. O que o estudo encontrou na prática

De forma resumida, a meta-análise mostrou:

  • Arroz fortificado: aumento modesto da hemoglobina (cerca de 3 g/L em média em relação ao controle).
  • Farinha de trigo fortificada: aumento discreto da hemoglobina (em torno de 2 g/L).
  • Redução da anemia: as quedas na prevalência foram pequenas e acompanhadas de alta incerteza estatística (probabilidade próxima de “meio a meio” de redução real em alguns modelos).

Os próprios autores concluem que arroz e farinha de trigo fortificados “provavelmente” aumentam a hemoglobina de forma modesta e “podem” reduzir a anemia em mulheres em idade reprodutiva, mas o efeito global é discreto e os intervalos de credibilidade são muito amplos.

Ou seja: o estudo mostra que a estratégia funciona, porém com ganhos pequenos, especialmente quando se observa a proporção de mulheres que realmente deixam de ser anêmicas.

3. Onde está o problema? O contexto bioquímico da fortificação

A grande questão, do ponto de vista fisiológico, é que:

  1. A fortificação utiliza quase sempre ferro não heme, forma química típica de plantas e sais sintéticos.
  2. Os alimentos usados como “veículo” são, em geral, cereais e derivados vegetais (trigo, milho, arroz, biscoitos, etc.).
  3. Esses mesmos alimentos carregam substâncias que atrapalham a absorção do ferro.

Guias técnicos e revisões sobre fortificação e anemia destacam que a maioria dos alimentos fortificados com ferro contém inibidores de absorção, como fitatos, polifenóis, oxalatos e cálcio (Food Fortification to Prevent and Control Iron Deficiency). (SciSpace)

Além disso, diretrizes da OMS sobre fortificação reconhecem que o ferro é um dos micronutrientes mais difíceis de adicionar aos alimentos, justamente porque as formas mais bem absorvidas tendem a reagir com componentes da matriz alimentar, enquanto as formas mais estáveis são menos biodisponíveis (WHO, Food Fortification with Micronutrients). (cesni-biblioteca.org)

Em outras palavras: a fortificação coloca ferro em um ambiente pouco favorável à sua absorção.

4. Antinutrientes nos alimentos fortificados: exemplos concretos

A literatura sobre metabolismo do ferro descreve com bastante clareza os antinutrientes presentes em alimentos vegetais que reduzem a absorção de ferro não heme. Entre os principais:

4.1. Fitatos (ácido fítico)

  • Encontrados em grãos de cereais, farelos, leguminosas, sementes e no germe dos grãos.
  • O fitato forma complexos estáveis com minerais, incluindo ferro, tornando-os pouco solúveis e difíceis de absorver no intestino.
  • Revisões clássicas mostram que o ácido fítico é um inibidor potente da absorção do ferro nativo e do ferro de fortificação em alimentos à base de cereais e leguminosas (Hurrell, 2004; Hurrell, 2004 – revisão). (PubMed)

Isso significa que farinhas de trigo e milho, especialmente em versões mais integrais, têm alto teor de fitato, que reduz a fração de ferro realmente absorvida.

4.2. Polifenóis e taninos

  • Presentes em cereais integrais, alguns grãos, leguminosas, chás, café, cacau, vinho e especiarias.
  • Polifenóis, incluindo taninos, também formam complexos com o ferro e reduzem a absorção do ferro não heme.
  • Estudos com refeições contendo feijão e milho mostram que altos níveis de polifenóis, junto com fitato, contribuem para uma absorção de ferro muito baixa (Petry et al.). (ScienceDirect)

4.3. Oxalatos e cálcio

  • Oxalatos são abundantes em vegetais como espinafre e algumas verduras; formam sais insolúveis com o ferro.
  • O cálcio pode reduzir a absorção tanto do ferro não heme quanto do ferro heme, dependendo da quantidade e da combinação alimentar (Pişkin, 2022). (PubMed)

Uma revisão recente resume de forma clara: polifenóis, fitatos, cálcio e certos tipos de proteínas vegetais estão entre os principais inibidores da absorção do ferro, enquanto vitamina C, proteínas animais e o próprio heme favorecem essa absorção (Pişkin et al., 2022). (ACS Publications)

5. Conflito estrutural: fortificar o que já inibe a absorção

Quando se olha o conjunto de evidências, surge uma contradição clara:

  • Do lado da política de saúde pública, defende-se a fortificação de trigo, milho, arroz e outros alimentos vegetais como forma barata e ampla de levar ferro à população.
  • Do lado da fisiologia, a mesma literatura mostra que cereais e leguminosas são justamente as matrizes com maior teor de antinutrientes que reduzem a absorção do ferro não heme.

Guias e revisões sobre fortificação reconhecem abertamente que a maior parte dos alimentos fortificados com ferro contém inibidores de absorção, como fitatos, polifenóis, oxalatos e cálcio, e que isso limita a eficácia real da estratégia (Food Fortification to Prevent and Control Iron Deficiency). (SciSpace)

O estudo de Dorbu e colaboradores confirma esse cenário na prática: apesar de toda a logística de fortificação, o impacto final na hemoglobina das mulheres é modesto, e a redução da anemia, quando presente, vem acompanhada de grande incerteza estatística (Dorbu et al., 2025). (ResearchGate)

Do ponto de vista científico, é um resultado coerente: adiciona-se ferro a alimentos que, fisiologicamente, não favorecem a sua absorção.

6. Comparação com o ferro de origem animal

A literatura sobre metabolismo do ferro mostra uma diferença marcante entre:

  • Ferro não heme – forma predominante em alimentos vegetais e na maior parte dos sais utilizados em fortificação.
  • Ferro heme – forma presente em carnes, vísceras, aves e peixes.

Estudos clássicos e revisões apontam que:

  • O ferro heme tem absorção muito maior e é pouco afetado por fitatos, polifenóis e outros inibidores.
  • O ferro não heme tem absorção baixa (na casa de 5–10% em muitas refeições) e é fortemente influenciado por antinutrientes e pelo contexto da refeição (Hallberg et al., 2000; Pişkin et al., 2022). (ScienceDirect)

Trabalhos clássicos com refeições mistas em humanos mostram que a fração de ferro heme absorvida pode ser várias vezes maior do que a fração de ferro não heme na mesma refeição (Björn-Rasmussen et al.). (JCI)

Revisões recentes reforçam que o ferro heme:

  • é absorvido por uma via específica,
  • praticamente não sofre impacto dos inibidores típicos de dietas à base de cereais,
  • e ainda exerce o chamado “fator carne”, ajudando a aumentar a absorção do ferro não heme presente na mesma refeição (Kalman et al., 2025). (MDPI)

Assim, do ponto de vista da biodisponibilidade, alimentos de origem animal ocupam uma posição muito mais favorável para corrigir deficiências de ferro do que o simples acréscimo de ferro não heme em matrizes vegetais ricas em antinutrientes.

7. Crítica técnica à estratégia de fortificação em cereais

Com base no conjunto de evidências apresentadas, é possível fazer uma crítica técnica e documentada à estratégia atual:

  • Evidência de eficácia modesta

    • Meta-análises específicas para mulheres em idade reprodutiva (como a de Dorbu et al.) mostram apenas ganhos discretos de hemoglobina e reduções pequenas e incertas na prevalência de anemia, mesmo após anos de fortificação (Dorbu et al., 2025). (ResearchGate)
  • Conflito entre veículo e biodisponibilidade
    • A escolha de trigo, milho e arroz como veículos, embora lógica do ponto de vista logístico, é pouco vantajosa fisiologicamente, porque estes alimentos são ricos em fitatos e, em muitos contextos, polifenóis, reconhecidos como inibidores importantes da absorção do ferro de fortificação (Hurrell, 2004; Pişkin, 2022). (PubMed)
  • Reconhecimento do problema pelos próprios especialistas em fortificação
    • Revisões e guias específicos de fortificação afirmam que a maioria dos alimentos fortificados com ferro contém inibidores de absorção, como fitatos, polifenóis, oxalatos e cálcio, o que obriga a usar formas especiais de ferro ou doses mais altas, com custo maior e risco de efeitos colaterais organolépticos (Food Fortification to Prevent and Control Iron Deficiency; WHO Fortificants, Chapter 5). (SciSpace)
  • Desalinhamento com a fisiologia humana
    • A espécie humana evoluiu consumindo quantidades significativas de ferro heme proveniente de alimentos de origem animal. A literatura atual mostra que esse ferro é mais facilmente absorvido e menos afetado por antinutrientes, enquanto a maior parte dos esquemas de fortificação insiste em fornecer ferro em formas menos biodisponíveis e mais vulneráveis a bloqueios pelo próprio alimento (Pişkin et al., 2022; Kalman et al., 2025). (PMC)

Esta crítica não nega que a fortificação possa ter algum benefício, mas indica que, como estratégia central, ela é estruturalmente limitada pelo tipo de alimento escolhido para receber o ferro.

8. Uma alternativa mais coerente: alimentos de origem animal ricos em ferro

Diante do quadro descrito – fortificação com ferro não heme em alimentos vegetais ricos em antinutrientes – uma interpretação coerente, baseada nas evidências disponíveis, é a seguinte (aqui há inferência a partir dos dados, e não uma recomendação formal de diretriz):

  • Se o objetivo é aumentar a hemoglobina de forma mais eficiente e reduzir a anemia, faz mais sentido priorizar fontes naturais de ferro heme, como:

    • carnes vermelhas,
    • vísceras (como fígado),
    • carnes de aves e peixes,
    • em contexto adequado à cultura alimentar e à condição clínica de cada população.

Revisões modernas apontam que:

  • O ferro heme é absorvido de forma mais eficiente,
  • é pouco afetado por fitatos, polifenóis e outros inibidores,
  • e a presença de pequenas quantidades de alimentos de origem animal pode aumentar a absorção do ferro não heme de outros alimentos da refeição (efeito “fator carne”) (Kalman et al., 2025; Pişkin et al., 2022). (MDPI)

Portanto, do ponto de vista fisiológico e de biodisponibilidade, parece mais lógico que políticas de combate à anemia deem maior ênfase ao incentivo do consumo de alimentos de origem animal ricos em ferro heme, complementados, quando necessário, por estratégias bem planejadas de fortificação e suplementação – e não o contrário.

Essa leitura não exclui a fortificação como ferramenta, mas sugere que ela deveria ser vista como apoio secundário, e não como eixo principal, em um cenário onde a base alimentar continue dominada por cereais e leguminosas ricos em antinutrientes que dificultam a absorção do ferro adicionado.

Fonte: https://doi.org/10.1111/mcn.13801

Postagem Anterior Próxima Postagem
Rating: 5 Postado por: