Calcificação das Artérias Coronárias em Diabetes Tipo 1 após 10 Anos de Dieta Cetogênica


Pessoas com diabetes tipo 1 têm risco muito maior de doença cardiovascular ao longo da vida, em especial de infarto e outras doenças das artérias do coração. Estudos mostram que esse risco pode ser até dez vezes maior em comparação com a população geral.

Um dos marcadores mais usados para avaliar risco de doença nas artérias do coração é a calcificação das artérias coronárias, medida por tomografia. Quanto maior o “escore de cálcio”, maior costuma ser a carga de placas ateroscleróticas e o risco futuro de eventos cardiovasculares.

Ao mesmo tempo, há muito debate sobre o uso de dieta cetogênica (muito baixa em carboidratos) em diabetes tipo 1, principalmente por causa de preocupações com aumento de colesterol LDL e consumo maior de gordura saturada. Organizações como a American Heart Association e a American Diabetes Association recomendam cautela com esse tipo de padrão alimentar em pessoas com diabetes, justamente pelo possível impacto nos lipídios e no risco cardiovascular.

O artigo de Koutnik e colaboradores, publicado em 2025 no Journal of Applied Physiology, apresenta um relato de caso que ajuda a ilustrar essa discussão: um homem com diabetes tipo 1, em dieta cetogênica por mais de 10 anos, que realizou exame de cálcio coronário.

O que é calcificação das artérias coronárias?

De forma simples:

  • As artérias coronárias são os vasos que levam sangue ao coração.
  • Com o tempo, podem se formar placas de gordura e outros materiais na parede desses vasos (aterosclerose).
  • Em estágios mais avançados, parte dessas placas pode se tornar calcificada, ou seja, ganhar depósitos de cálcio.

A tomografia computadorizada consegue “enxergar” esse cálcio. O resultado é um número chamado escore de cálcio coronário (escore de Agatston):

  • Escore 0: não há calcificação detectável – em geral associado a risco muito baixo de doença coronária clínica nos anos seguintes.
  • Escore acima de 0: indica presença crescente de calcificação e, em média, maior risco cardiovascular.

Em pessoas com diabetes tipo 1, os estudos mostram que a calcificação costuma aparecer mais cedo e em maior frequência do que na população geral. Em homens com diabetes tipo 1 entre 30 e 39 anos, de 30% a 70% já apresentam escore de cálcio acima de 1; entre 40 e 49 anos, esse número sobe para 70% a 90%.

Quem é o paciente descrito no artigo?

O relato apresenta um homem de 33 anos, com:

  • Diabetes tipo 1 há 16 anos.
  • Adoção de dieta cetogênica há mais de 10 anos (≤50 g/dia de carboidratos).
  • Nenhum uso de medicamento para redução de lipídios (sem estatina ou similar).

Ao longo desse período, ele manteve:

  • Hemoglobina glicada (HbA1c) em 5,5%, valor considerado dentro da faixa de “euglicemia” (abaixo de 5,7%), algo raro em diabetes tipo 1, onde menos de 1% dos pacientes atinge esse nível em estudos populacionais. (PubMed)
  • Redução de 43% na dose diária de insulina em comparação com o período pré-dieta cetogênica, conforme dados relatados em artigo anterior dos mesmos autores.

Como era a dieta e o estilo de vida desse paciente?

Os autores descrevem, com base em registros detalhados de alimentação e atividade física, o padrão de vida do participante:

  • Ingestão calórica média: 2.938 kcal/dia.
  • Distribuição dos macronutrientes:
    • 12% de carboidratos (cerca de 49 g/dia de carboidratos líquidos).
    • 24% de proteína.
    • 64% de gordura, com 65 g/dia de gordura saturada.
  • A dieta era predominantemente composta por alimentos integrais, com registro detalhado em aplicativo e pesagem dos alimentos.
  • Atividade física:
    • 7.978 passos por dia em média.
    • Cerca de 577 minutos por semana de exercício em intensidade moderada a vigorosa, incluindo treinamento resistido e exercícios aeróbicos.
  • Composição corporal:
    • Gordura corporal de 9,8% medida por densitometria.

Em relação aos exames:

  • LDL-colesterol: 129 mg/dL (classificado como elevado pelos autores).
  • Pressão arterial em consultório: 113/67 mmHg.
  • Monitorização ambulatorial diurna: 132/80 mmHg (configurando “hipertensão mascarada”).

O exame de cálcio coronário: o que foi feito?

O paciente realizou uma tomografia computadorizada de alta resolução do tórax, com foco nas artérias coronárias. Foram usados:

  • Equipamento de 64 cortes.
  • Software específico para quantificação de cálcio coronário.
  • Protocolo padronizado de análise, com cálculo do escore de Agatston e volume de cálcio em cada segmento arterial.

A tabela apresentada no artigo mostra que:

  • Artéria coronária esquerda (tronco e descendente anterior): escore 0.
  • Artéria circunflexa esquerda: escore 0.
  • Artéria coronária direita e artéria descendente posterior: escore 0.
  • Escore total de cálcio coronário: 0.

A figura da página 16 do artigo ilustra várias fatias de tomografia do coração. As regiões amarelas indicariam áreas de calcificação nas artérias; nessas imagens, não há sinal amarelo nas regiões cardíacas, reforçando a ausência de cálcio coronário visível no exame.

O que significa “escore 0” nesse contexto?

Segundo os autores, um escore de cálcio 0 em um homem com diabetes tipo 1, entre 30 e 39 anos, é um achado particularmente relevante, porque:

  • Em estudos com pessoas da mesma faixa etária e com diabetes tipo 1, 30% a 70% dos homens já apresentam algum grau de calcificação (escore >1).
  • Na população geral, o grupo de maior risco (homens brancos) tem probabilidade média de ~12% de apresentar escore >0 nessa idade.

Além disso, o paciente do relato:

  • É do sexo masculino (fator de maior risco para progressão de cálcio coronário).
  • Apresenta LDL-colesterol elevado, outra variável que em coortes com diabetes tipo 1 se associa à maior probabilidade de escore positivo.

Apesar disso, o escore de cálcio foi 0, o que, de acordo com os autores, sugere risco cardiovascular muito baixo naquele momento, com probabilidade inferior a 5% de doença coronária obstrutiva clinicamente relevante.

Como os autores interpretam esse caso?

Em publicações anteriores sobre o mesmo paciente, o grupo já havia mostrado que, após mais de 10 anos de dieta cetogênica:

  • A HbA1c permaneceu em torno de 5,5%.
  • Houve redução importante da necessidade de insulina.
  • Não foram observadas alterações negativas em função renal, função tireoidiana ou densidade mineral óssea.
  • Diversos parâmetros cardiovasculares avançados (rigidez arterial, função endotelial, variabilidade da frequência cardíaca, função diastólica do ventrículo esquerdo) eram semelhantes ou até melhores que os de adultos da mesma idade com e sem diabetes tipo 1.

Por outro lado, os exames de lipídios e pressão sugeriam aumento de risco, devido a:

  • LDL-colesterol e colesterol total elevados.
  • Apolipoproteína B e número de partículas de LDL próximos ao limite superior.
  • Pressão arterial ambulatorial ligeiramente elevada (hipertensão mascarada).

No novo artigo, a inclusão do escore de cálcio 0 acrescenta uma peça importante ao quadro:

  • Mostra ausência de sinais de calcificação nas artérias coronárias após mais de 10 anos de dieta cetogênica em um indivíduo com diabetes tipo 1 e LDL elevado.
  • Os autores destacam que esse achado é coerente com estudos recentes em pessoas em dieta com forte restrição de carboidratos há pelo menos 5 anos, nos quais LDL muito elevado não se associou, necessariamente, a maior carga de cálcio coronário.

Limitações: o que este caso não permite concluir?

Os próprios autores são claros quanto às limitações:

  • Trata-se de apenas um indivíduo. Um relato de caso não permite generalizar resultados para todas as pessoas com diabetes tipo 1.
  • O paciente ainda está na faixa de 30–39 anos; embora já seja uma idade em que muitos com diabetes tipo 1 apresentam cálcio coronário, não é possível saber o que acontecerá nas décadas seguintes.
  • Não é possível afirmar com certeza que esse indivíduo teria um escore 0 por causa da dieta cetogênica. Ele poderia, teoricamente, ter o mesmo resultado mesmo com outro padrão alimentar.
  • São necessários estudos com amostras maiores e adultos mais velhos com diabetes tipo 1 para avaliar de forma robusta se a redução terapêutica de carboidratos se associa a menor calcificação coronária.

Ou seja, o caso não prova que a dieta cetogênica protege contra doença coronária em diabetes tipo 1, nem que esse tipo de dieta seja seguro para todas as pessoas nessa condição. O que o artigo mostra, com base em dados objetivos, é que:

Em um homem com diabetes tipo 1, que seguiu dieta cetogênica por mais de 10 anos, manteve excelente controle glicêmico e praticou atividade física regular, não foi encontrada calcificação nas artérias do coração, apesar de LDL elevado e ausência de medicação para reduzir lipídios.


Resumo

De forma resumida, o relato descreve:

  1. Risco geral: pessoas com diabetes tipo 1 têm risco muito alto de doença cardiovascular e frequentemente apresentam cálcio nas artérias do coração já na casa dos 30 anos.
  2. Paciente específico: homem de 33 anos, com diabetes tipo 1 há 16 anos, em dieta cetogênica há mais de 10 anos, sem remédios para colesterol.
  3. Controle glicêmico: HbA1c de 5,5% e forte redução na dose de insulina ao longo do seguimento.
  4. Estilo de vida ativo: passos diários elevados, muitas horas semanais de exercício e baixa gordura corporal.
  5. Exame do coração: tomografia de coronárias mostrou escore de cálcio 0, isto é, sem sinais de calcificação nas artérias do coração.
  6. Interpretação: esse achado sugere risco cardiovascular baixo naquele momento, apesar de LDL elevado, mas não permite concluir que a dieta cetogênica seja automaticamente protetora ou indicada para todas as pessoas com diabetes tipo 1. Estudos maiores ainda são necessários.

Assim, o artigo oferece um exemplo bem documentado de longa duração de dieta cetogênica em diabetes tipo 1, com excelente controle glicêmico e ausência de calcificação coronária detectável, sem extrapolar além dos dados observados.

Fonte: https://doi.org/10.1152/japplphysiol.00893.2025

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