O Estado Hipometabólico do Cérebro na Enxaqueca: a Dieta Cetogênica é a Resposta?


O artigo de revisão recém-publicado em Brain and Behavior apresenta uma síntese ampla sobre a hipótese de que o cérebro de pessoas com enxaqueca opera em estado hipometabólico — isto é, com déficit energético crônico — e discute se a dieta cetogênica (DC) poderia corrigir esse desbalanço e reduzir a carga da doença. A equipe descreve a base biológica, resume os estudos clínicos e enfatiza as limitações metodológicas que ainda impedem recomendações definitivas.

Por que falar em “déficit de energia” no cérebro com enxaqueca?

A revisão compila evidências de que múltiplos fatores interligados contribuem para a enxaqueca: disfunção mitocondrial, alterações do metabolismo da glicose, neuroinflamação e estresse oxidativo, desequilíbrios de peso e mudanças na microbiota intestinal. Em conjunto, esses elementos sustentam um cenário de mismatch energético (demanda > oferta) no cérebro, tanto entre as crises quanto durante os episódios.

Estudos de espectroscopia por RM e FDG-PET, citados na revisão, sugerem menor fosforilação oxidativa e redução de ATP em cérebros com enxaqueca, além de uma resposta visual que excede a captação de glicose em grande parte dos pacientes avaliados. Esses achados reforçam a ideia de que, quando novos estressores se somam (ex.: hipoglicemia, privação de sono), a crise pode ser precipitada ou sustentada.

O que a dieta cetogênica propõe?

A DC é um padrão alimentar muito baixo em carboidratos (geralmente <50 g/dia), com gorduras elevadas e proteína adequada, cujo objetivo é induzir cetose nutricional. Nessa condição, corpos cetônicos — especialmente o beta-hidroxibutirato (BHB) — atravessam a barreira hematoencefálica e podem suprir parcela substancial das necessidades energéticas do cérebro. A revisão destaca ainda que, grama por grama, BHB e acetoacetato rendem mais ATP do que a glicose, além de modularem vias inflamatórias e excitabilidade cortical.

Para leituras diretas sobre mecanismos e recomendações clínicas citadas na revisão, ver:

  • Gross et al., 2019 — possíveis mecanismos protetores dos corpos cetônicos;
  • Di Lorenzo et al., 2021 — recomendações clínicas para uso de DC em cefaleia;
  • Cervenka et al., 2021 — recomendações internacionais para adultos em terapias cetogênicas.

O que mostram os estudos clínicos resumidos pela revisão?

A revisão identifica evidências preliminares — históricas e contemporâneas — de benefício da DC sobre frequência e intensidade das crises e sobre o uso de analgésicos. Porém, a qualidade metodológica varia e impede conclusões definitivas. Entre os achados destacados:

  • Ensaio randomizado (prova de conceito) em mulheres com enxaqueca mostrou que um mês de DC muito baixa em carboidrato reduziu mais rapidamente dias de cefaleia e uso de analgésicos do que uma dieta padrão hipocalórica; ao transitar de volta para a dieta padrão, houve piora transitória, mas ainda melhor que a linha de base (Di Lorenzo et al., 2015).
  • Ensaio duplo-cego crossover com pacientes com sobrepeso apontou que a indução de cetose (e não apenas o déficit calórico) associou-se à redução de dias de enxaqueca (Di Lorenzo et al., 2019).
  • Ensaio randomizado controlado em enxaqueca episódica de alta frequência encontrou redução superior de dias de enxaqueca, além de maior perda de peso e melhora de qualidade de vida no grupo com DC muito baixa em carboidratos versus dieta hipocalórica balanceada (Caprio et al., 2023).
  • Coortes observacionais diversas relataram redução de dias/mês de enxaqueca, duração e intensidade, bem como menor uso de analgésicos durante a DC; em alguns estudos, maiores níveis de cetonúria correlacionaram-se com melhor resposta clínica (Lovati et al., 2022).

A revisão deixa claro que amostras pequenas, protocolos heterogêneos, falta de padronização de macro-nutrientes e monitoramento de cetose (urina/sangue) e seguimento curto são limitações recorrentes. Há também viés de seleção em alguns ensaios (ex.: apenas mulheres) e populações específicas (ex.: sobreuso de medicação), o que restringe a generalização dos resultados.

Mecanismos plausíveis para o efeito da DC na enxaqueca

Segundo a revisão, a DC atua em múltiplos alvos relevantes à fisiopatologia da enxaqueca:

  1. Bioenergética mitocondrial: aumenta a eficiência da fosforilação oxidativa, eleva ATP, melhora a biogênese e a função mitocondrial.
  2. Neuroinflamação/estresse oxidativo: o BHB inibe inflamassoma, favorece hiperacetilação de histonas pró-antinflamatórias e gera menos radicais livres em comparação à glicose.
  3. Excitabilidade cortical: eleva GABA e reduz glutamato, podendo diminuir a probabilidade de depressão cortical alastrante (associada à aura).
  4. Metabolismo da glicose/insulino-resistência: pode contornar períodos de baixa disponibilidade de glicose cerebral, fornecendo combustível alternativo.
  5. Peso corporal: o controle do peso, quando presente, pode modular vias inflamatórias sistêmicas e reduzir risco de cronificação.

O que não se sabe (ainda)

A revisão enfatiza lacunas que precisam ser preenchidas por ensaios clínicos maiores e padronizados:

  • Composição alimentar (razões gordura:carboidrato:proteína), velocidade de transição para a DC e faixas alvo de cetose devem ser claramente reportados.
  • Monitoramento de cetose (sangue vs. urina), timing das coletas e limiares de resposta precisam de consenso.
  • Desfechos clínicos (dias de enxaqueca, intensidade, duração, uso de agudo, MIDAS, HIT-6) e biomarcadores metabólicos devem ser coletados de forma uniforme, permitindo metanálises e diretrizes mais robustas.

Segurança e acompanhamento

Embora a DC seja uma alternativa não farmacológica, a revisão recomenda supervisão profissional para avaliar elegibilidade, adesão e efeitos adversos (ex.: sintomas gastrointestinais iniciais, cálculo renal, deficiências nutricionais). O texto também menciona preocupações teóricas de longo prazo (ex.: dislipidemia, esteatose hepática em modelos animais), salientando a escassez de dados humanos com seguimentos prolongados especificamente em enxaqueca. Assim, o acompanhamento médico e nutricional é considerado prudente.

Para posicionamentos práticos de especialistas citados na revisão, ver o consenso internacional: Cervenka et al., 2021.

E suplementos cetogênicos?

A revisão relata dados preliminares e inconsistentes para triglicerídeos de cadeia média e cetonas exógenas: um estudo piloto sugere redução de frequência mensal com um complexo contendo TCM, enquanto outro não mostrou diferença; um ensaio com BHB exógeno não reproduziu o efeito clínico da DC intensiva, sugerindo que apenas elevar cetonas pode não replicar os efeitos sistêmicos da intervenção dietética. Mais pesquisas são necessárias. Chow et al., 2024; Putananickal et al., 2022.

Conclusão

A revisão conclui que há plausibilidade biológica e sinais clínicos promissores de que a dieta cetogênica possa corrigir o hipometabolismo cerebral e reduzir a carga da enxaqueca (dias, intensidade e uso de analgésicos). Contudo, a recomendação rotineira exige ensaios randomizados maiores, com padronização de protocolos, monitoramento de cetose e seguimento mais longo, para confirmar magnitude de efeito, segurança e quais perfis de pacientes se beneficiam mais. Até lá, a DC pode ser considerada experimental em contexto clínico, com acompanhamento especializado e monitoramento estruturado.

Fonte: https://doi.org/10.1002/brb3.70860

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