O efeito da dieta cetogênica no metabolismo do cortisol e os mitos sobre tireoide e queda de cabelo


Circulam muitas afirmações sobre dietas cetogênicas e carnívoras que soam preocupantes, mas não têm apoio nas melhores evidências científicas. Uma das mais comuns é a ideia de que, para gerar energia, o corpo precisaria manter cortisol e adrenalina constantemente altos, o que levaria, no longo prazo, a uma supressão da tireoide e a problemas como queda de cabelo. Esse argumento costuma ser repetido em redes sociais, mas não encontra respaldo quando analisamos a fisiologia humana e os ensaios clínicos.

Este artigo reúne as informações mais relevantes de estudos de qualidade para mostrar, de forma clara, por que essa narrativa não se sustenta.

Como o corpo produz energia em dietas com pouco carboidrato

Quando os carboidratos da dieta diminuem, o corpo passa a usar gordura como combustível principal. Isso acontece de duas formas diferentes e complementares:

  • Cetogênese: processo no fígado em que a gordura é transformada em corpos cetônicos (β-hidroxibutirato e acetoacetato). Esses corpos cetônicos circulam no sangue e fornecem energia para cérebro, músculos e outros tecidos.
  • Gliconeogênese (GNG): processo também no fígado, em que o corpo fabrica glicose a partir de outras fontes, como glicerol (vindo da gordura), lactato e aminoácidos. Essa glicose é usada apenas pelos tecidos que realmente precisam dela.

Ou seja, os corpos cetônicos não são “fabricados pela gliconeogênese”. São vias diferentes, que trabalham em paralelo para garantir energia suficiente.

O papel real de cortisol e adrenalina

O corpo tem uma hierarquia de defesa para evitar que o açúcar no sangue caia demais:

  • Quando a glicemia cai abaixo de 65 mg/dL, o glucagon é liberado e o fígado quebra glicogênio para liberar glicose.
  • A adrenalina também ajuda rapidamente a disponibilizar energia.
  • Só se a glicemia cair ainda mais (abaixo de 55 mg/dL) entra em ação o cortisol, que libera energia em situações de emergência, como parte da resposta de “luta ou fuga”.

Isso mostra que o cortisol não fica alto o tempo todo em quem faz dieta cetogênica. Ele é um recurso de segurança para hipoglicemias profundas. A maior parte da regulação é feita por glucagon e adrenalina em níveis normais.

O que os estudos realmente mostram sobre cortisol

Dois ensaios clínicos são especialmente importantes:

  • JCEM 2007 (Stimson e colegas): em obesos seguindo dieta baixa em carboidratos, observou-se um padrão de metabolismo do cortisol diferente do da síndrome metabólica. Houve aumento da regeneração hepática e redução da inativação, sem elevação de atividade no tecido adiposo. Isso significa que o corpo reorganizou o metabolismo do cortisol de forma mais favorável, não em estado de estresse crônico.
  • JAMA 2012 (Ebbeling e colegas): após perda de peso, três dietas foram comparadas. Quem seguiu a dieta muito baixa em carboidratos teve melhor perfil metabólico (HDL mais alto, triglicerídeos mais baixos e maior gasto energético). Nesse grupo, o cortisol urinário de 24 h foi mais alto, mas esse dado isolado não explica se houve mais produção, regeneração ou apenas menos eliminação do hormônio. Por isso, não pode ser usado como prova de “estresse maior”.

Revisões especializadas confirmam que é preciso olhar o padrão enzimático (especialmente a enzima 11β-HSD1), e não apenas um número de cortisol, para entender o quadro.

Tireoide e dietas de baixo carboidrato

É verdade que o hormônio T3 costuma diminuir em dietas cetogênicas. Mas isso não significa doença. O TSH e o T4 geralmente permanecem estáveis. Essa queda do T3 é vista como uma adaptação natural: o corpo passa a usar mais gordura e corpos cetônicos e, por isso, precisa de menos T3 para acelerar o metabolismo da glicose.

Não existem evidências de que adultos saudáveis desenvolvam hipotireoidismo clínico apenas por comer pouco carboidrato. A literatura mostra que é uma resposta fisiológica, não uma “supressão da tireoide”.

Queda de cabelo: o que realmente acontece

A perda de cabelo em dietas costuma estar ligada ao chamado eflúvio telógeno (ET). Esse quadro aparece quando o corpo passa por estresse metabólico, como:

  • Perda de peso rápida.
  • Restrição calórica severa.
  • Deficiências de nutrientes como ferro, zinco, proteínas e vitaminas.
  • Situações como pós-parto ou doenças agudas.

Ou seja, não é o “baixo carboidrato” que causa queda de cabelo, mas sim fatores como déficit calórico, carência nutricional ou estresse físico. Esses episódios são transitórios e costumam melhorar quando a alimentação é ajustada. Não há base para dizer que “todo carnívoro de longo prazo fica careca” por causa da dieta.

Conclusão

A afirmação de que “o corpo só consegue gerar energia liberando continuamente cortisol e adrenalina, o que em longo prazo suprime a tireoide e causa queda de cabelo” não é sustentada pela ciência.

As melhores evidências mostram que:

  • O corpo gera energia por cetogênese (corpos cetônicos a partir da gordura) e por gliconeogênese (glicose a partir de substratos), em rotas diferentes e reguladas.
  • O cortisol não fica cronicamente elevado: ele só é chamado em situações de hipoglicemia mais profunda.
  • Ensaios clínicos indicam que dietas de baixo carboidrato melhoram o padrão do metabolismo do cortisol e vários marcadores de saúde cardiovascular.
  • A tireoide não é “suprimida”, mas sim ajustada a um novo estado energético.
  • A queda de cabelo é geralmente causada por fatores como perda de peso rápida e falta de nutrientes, não pela ausência de carboidratos.

Portanto, a narrativa de “cortisol e adrenalina sempre altos → supressão da tireoide → calvície” é um mito sem suporte nas melhores evidências.

Referências

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