Glicina ajuda a proteger os olhos contra a catarata


A catarata é hoje a principal causa de cegueira reversível em todo o mundo. Ela ocorre quando o cristalino, a lente natural do olho, perde a transparência e se torna opaco, prejudicando a visão. O tratamento disponível é basicamente cirúrgico, mas a cirurgia não reproduz todas as funções do cristalino natural e pode gerar complicações. Por isso, existe grande interesse em identificar formas de prevenir ou retardar a catarata por meios não invasivos.

Um estudo recente, publicado na revista Free Radical Biology and Medicine, investigou o papel da glicina, um aminoácido simples produzido pelo corpo e presente em alimentos, no desenvolvimento da catarata induzida por radiação ultravioleta B (UVB). Os experimentos foram conduzidos tanto em células humanas do cristalino (HLE-B3) quanto em modelos animais (camundongos C57BL/6J e animais geneticamente modificados sem Nrf2).

O problema do ferro no cristalino

O ferro é um mineral essencial para as células, mas quando está em excesso e na forma “livre” (Fe²⁺), torna-se altamente tóxico. Ele reage com oxigênio e gera radicais livres muito agressivos, que atacam lipídios, proteínas e DNA. Nas células do cristalino, a ferritina funciona como um cofre, armazenando o ferro de forma segura (Fe³⁺ estável).

O estudo mostrou que a exposição à radiação UVB desestabiliza esse sistema: a ferritina é degradada mais rápido que o normal pelos lisossomos, organelas de digestão celular, liberando ferro livre em excesso. Esse acúmulo provoca ferroptose, uma forma de morte celular ligada ao ferro e à peroxidação de lipídios, que contribui diretamente para a perda de transparência do cristalino.

O papel da glicina

A glicina apresentou efeitos protetores claros nesse processo, atuando em dois eixos complementares:

Eixo lisossomo–ferritina (via PAT1):

  • A glicina interagiu com o transportador PAT1, presente na membrana do lisossomo.
  • Essa interação reduziu a degradação da ferritina, permitindo que o ferro permanecesse guardado no “cofre” em vez de se espalhar pelo citoplasma.
  • Com isso, diminuiu a quantidade de ferro livre (Fe²⁺), reduzindo a lipoperoxidação e a ferroptose.

Eixo antioxidante (via Nrf2):

  • A glicina ajudou a restaurar os níveis de Nrf2, uma proteína reguladora chave do sistema antioxidante celular.
  • O Nrf2 reprimiu a expressão da proteína NCOA4, envolvida na degradação da ferritina, reforçando a preservação do ferro armazenado.
  • Esse efeito ampliou a capacidade antioxidante das células, incluindo o sistema da enzima GPX4, essencial para neutralizar radicais lipídicos.

Além disso, os pesquisadores observaram alterações no comportamento da proteína PCBP2, que transporta ferro dentro das células. Sob radiação UVB, aumentava a ligação do ferro a PCBP2, mas isso não resolvia o problema, já que a ferritina estava sendo degradada. Com a glicina, ao preservar a ferritina e reduzir o ferro livre, a necessidade desse transporte caiu.

Evidências experimentais

  • Em camundongos expostos à UVB, o tratamento oral com glicina reduziu a opacificação do cristalino em comparação aos animais não tratados.
  • Em células humanas HLE-B3, a glicina diminuiu ferro livre, reduziu radicais e lipoperoxidação, restaurou níveis de ferritina e GPX4, e aumentou a sobrevivência celular.
  • Silenciamento genético: quando genes como FTH1 (ferritina), PAT1 ou Nrf2 foram bloqueados, a proteção da glicina desapareceu, confirmando a importância desses mecanismos.

Significado dos resultados

Esse estudo mostra que a glicina pode recalibrar a homeostase do ferro nas células do cristalino, atuando para:

  • Preservar a ferritina, evitando que o ferro armazenado seja liberado precocemente.
  • Reduzir o ferro livre (Fe²⁺), diminuindo a produção de radicais altamente tóxicos.
  • Ativar o sistema antioxidante celular, aumentando a resistência das células ao estresse oxidativo.

Na prática, isso resultou em cristalinos mais transparentes e menos danificados em animais tratados.

Limitações

É importante destacar que os achados são pré-clínicos. Foram observados em modelos animais e celulares, não em pessoas. Não há ainda comprovação de que a glicina previna ou trate a catarata em humanos. A dose, a forma de administração e a segurança precisam ser avaliadas em ensaios clínicos.

Benefícios já comprovados da glicina em humanos

Enquanto o uso da glicina para catarata está em fase experimental, existem evidências robustas em humanos sobre outros benefícios:

  • Qualidade do sono: melhora a rapidez para adormecer e a sensação de descanso ao acordar.
  • Controle glicêmico: aumenta a sensibilidade à insulina e reduz picos de glicose.
  • Ação antioxidante e anti-inflamatória: reduz estresse oxidativo e inflamação sistêmica.
  • Saúde cardiovascular: níveis adequados estão associados a menor risco de hipertensão e eventos cardiovasculares.
  • Envelhecimento saudável: ensaios clínicos mostraram melhora em função mitocondrial, resistência à insulina e marcadores de estresse oxidativo em idosos.

Esses dados indicam que a glicina já possui usos reconhecidos em outras áreas da saúde.

Fontes alimentares de glicina

A glicina está presente em vários alimentos de origem animal, principalmente os ricos em colágeno:

  • Carnes bovinas, suínas e de aves, especialmente cortes com tecido conjuntivo.
  • Pele de frango e pele de porco, ricas em colágeno.
  • Gelatina e caldos de ossos, produzidos a partir de colágeno hidrolisado.
  • Peixes e frutos do mar, que também fornecem quantidades significativas.

Essas fontes ajudam a manter níveis adequados do aminoácido de forma natural.

Suplementos de glicina

A glicina também está disponível como suplemento em pó ou cápsulas. Ensaios clínicos usaram doses entre 3 e 10 g por dia, geralmente bem toleradas e seguras. Esses estudos mostraram benefícios em sono, metabolismo, estresse oxidativo e saúde cardiovascular. No entanto, não existe recomendação específica para catarata em humanos.

Conclusão

A glicina se mostra um candidato promissor para estratégias de proteção do cristalino, pois regula o ferro, reduz o estresse oxidativo e retarda a morte celular induzida por radiação UVB em modelos experimentais. Embora ainda não existam evidências clínicas em humanos para catarata, a pesquisa amplia as perspectivas de prevenção não invasiva.

Ao mesmo tempo, já há comprovação científica sólida de que a glicina oferece benefícios reais em outras áreas da saúde, reforçando sua importância como aminoácido funcional, tanto obtido pela alimentação quanto por suplementação.

Fonte: https://doi.org/10.1016/j.freeradbiomed.2023.11.020

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