Efeitos Benéficos da Cetose Nutricional para o Coração Doente


Este artigo resume as principais conclusões de uma revisão recente em Current Atherosclerosis Reports sobre como intervenções cetogênicas — dieta cetogênica e cetonas exógenas — podem beneficiar a função cardíaca em diferentes contextos clínicos. A revisão descreve a fisiologia dos corpos cetônicos, compara estratégias para elevar a cetonemia e apresenta achados de estudos agudos e de 14 dias em insuficiência cardíaca, além de destacar lacunas para pesquisas de longo prazo.

Como o coração usa energia em saúde e doença

Em adultos saudáveis, o coração é metabolicamente flexível e produz a maior parte do ATP por fosforilação oxidativa. Predomina a oxidação de ácidos graxos, com glicose como substrato secundário; lactato e aminoácidos contribuem em menor escala. Já o coração doente perde flexibilidade, tem queda de ~30% na geração de ATP e sofre remodelamento estrutural e metabólico. A oxidação de ácidos graxos pode estar reduzida (até ~70% em alguns cenários), e há maior dependência de glicólise — situação problemática quando há resistência à insulina. Nessa condição, corpos cetônicos entram nas mitocôndrias sem depender do transporte via CPT1 nem da sinalização de insulina, oferecendo um “atalho” energético que melhora a eficiência por unidade de oxigênio consumido.

O que são corpos cetônicos e por que interessam ao coração

Acetoacetato (AcAc) e beta-hidroxibutirato (BHB) são produzidos no fígado a partir de ácidos graxos em contextos de baixo carboidrato, jejum ou outras estratégias cetogênicas. Além de combustível, atuam como sinais metabólicos com efeitos sobre inflamação, estresse oxidativo e expressão gênica. O coração utiliza cetonas em proporção direta à sua concentração no sangue: quanto maior a BHB circulante, maior a captação e oxidação cardíaca.

Definições e faixas de cetose

A revisão propõe “eucetonemia” para o intervalo fisiológico considerado benéfico: ~0,5 a 5–6 mmol/L (mM) de BHB. Valores usuais, em dietas ricas em carboidratos, ficam <0,3 mM após jejum noturno. A cetoacidose, por sua vez, é uma condição patológica distinta, associada a deficiência de insulina e sobrecarga de prótons.

Estratégias para atingir a eucetonemia

  • Dieta cetogênica bem formulada (WFKD): muito baixo carboidrato (<50 g/dia), proteína moderada e gordura ajustada à energia total. Em vida livre, BHB média costuma ficar ~0,3–1 mM, embora haja grande variabilidade. Em condições muito controladas, valores >2 mM foram observados.
  • Cetonas exógenas e pró-cetonas (ésteres, sais, C8, 1,3-butanodiol): elevam BHB de forma aguda por horas; não reduzem insulina como a restrição de carboidratos, devendo ser vistas como adjuvantes e não substitutas da dieta.
  • Outros indutores: jejum prolongado, exercício de alto volume, infusão intravenosa e inibidores de SGLT2 (que elevam BHB de modo modesto e sustentado, ~0,3–0,5 mM).

O que mostram os estudos em função cardíaca

Intervenções agudas (minutos–horas):

  • Infusão de BHB em humanos aumentou o fluxo sanguíneo miocárdico (~+75% em idosos saudáveis) e reduziu captação de glicose pelo miocárdio, sugerindo preferência por cetonas quando disponíveis.
  • Em insuficiência cardíaca, houve respostas dose-dependentes: aumentos de débito cardíaco, volume sistólico e fração de ejeção, com queda de resistências vascular sistêmica e pulmonar. Achados semelhantes ocorreram em hipertensão pulmonar.
  • Éster de cetona por via oral reproduziu ganhos rápidos (15–30 min): maior débito cardíaco, perfusão miocárdica e deformação (strain), sem piorar a eficiência mecânica externa, e com queda da resistência vascular.

Intervenções de 14 dias (ingestão diária de éster de cetona):

  • Em HFrEF e HFpEF com diabetes, estudos cruzados (n≈24 em cada) mostraram melhora sustentada em parâmetros hemodinâmicos mesmo em níveis “de vale” de BHB, com ampliação dos efeitos após a dose aguda. Não houve visitas basais verdadeiras, o que limita conclusões sobre taquifilaxia, mas os benefícios persistiram ao longo das duas semanas.

SGLT2i e desfechos:

  • Ensaios com SGLT2i documentam redução consistente de morte cardiovascular e hospitalização por insuficiência cardíaca. A elevação de cetonas é modesta, porém contínua, e pode contribuir para parte dos benefícios de longo prazo, embora a imagem cardíaca nem sempre capte mudanças estruturais marcantes.

Quanto “mais alto”, melhor?

A revisão discute indícios de que faixas mais altas dentro da eucetonemia (~2–6 mM) possam gerar efeitos clínicos mais robustos em certas indicações cardíacas, dado o gradiente dose-resposta entre concentração de BHB e captação/oxidação miocárdica, além de melhorias funcionais repetidamente observadas. Contudo, a prova definitiva ainda falta: são necessários estudos de longa duração, com medidas frequentes de BHB ao longo do dia, para relacionar níveis-alvo a desfechos clínicos.

Pontos de cautela e personalização

  • Cetonas exógenas não replicam o conjunto de efeitos da WFKD (p.ex., redução de insulina, maior oxidação de ácidos graxos). O uso combinado pode ser aditivo ou sinérgico, mas requer confirmação em desfechos duros.
  • Respostas individuais à dose são variáveis, e refeições (principalmente ricas em carboidratos) podem atenuar a cetonemia após pró-cetonas.
  • Restrições alimentares excessivas para “forçar” BHB alta podem prejudicar adesão e nutrição; protocolos devem preservar densidade nutricional e massa magra.
  • O caminho mais promissor apontado é personalizar a estratégia para manter cetose nutricional sustentada (p.ex., 0,5 a 5–6 mM) conforme o contexto clínico, metas funcionais e tolerabilidade, enquanto se aguardam ensaios mais longos com desfechos clínicos.

Conclusão

Elevar corpos cetônicos dentro da faixa fisiológica parece melhorar rapidamente a função cardíaca em diferentes cenários, com efeitos proporcionais aos níveis de BHB e duráveis por pelo menos 14 dias em estudos iniciais. A combinação de dieta cetogênica bem formulada com cetonas exógenas desponta como estratégia potencialmente eficiente e segura para manter eucetonemia, desde que individualizada e acompanhada clinicamente. Ainda faltam estudos de longo prazo com desfechos duros para definir níveis-alvo ideais e protocolos padronizados.

Fonte: https://doi.org/10.1007/s11883-025-01333-8

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